09 dezembro 2009

Um magrão pergunta:
- Sidi! Posso colar um cartaz e pendurar uma cerveja?
- Te liga vagabundo. Larga daqui.

Uma gostosa pergunta:
- Sidi! Posso colar um cartaz e pendurar uma cerveja?
- Claro meu amor, fica à vontade. O que eu não faço por ti heim? (Pisca e dá uma boa olhada na bunda da gostosa.)

Uma moça bonita:
- Oi! Eu posso dar uma olhadinha na festa? Quero ver se uma amiga minha tá aí dentro.
- Claro, fica à vontade gatinha.
(Ela sobe e demora muito tempo para voltar.)

Um cara negro:
- Oi! Eu posso dar uma olhada na festa? Quero ver se um amigo meu tá aí dentro.
- Vai logo magrão, mas é rápido.
(O cara demora um pouco...)
- Ô meu, te liga, aquele negão subiu lá e até agora não voltou. Te liga aqui na portaria que eu lá catá esse negão. arracá esse negão de lá. Tá demorando demais, acha que eu babaca. catá esse vagabundo. Ô negão (Referindo-se ao outro homem que está na portaria, também é negro.) é dez e traço, não dá arrego não heim. Te liga. (O homem negro que está na portaria não diz nada, olha para baixo e senta-se no banquinho enquanto o homem branco levanta e sai para "catar o negão", quando chega na porta o cara negro desce das escadas agradecendo.)
- Ó, valeu mesmo heim! mais!
(O homem branco fica imóvel na porta. Parece envergonhado. Pensa...Não diz nada.)

01 dezembro 2009

A infanticida Maria Farrar - Bertolt Brecht

Maria Farrar, nascida em abril,
sem sinais particulares,
menor de idade, orfã, raquítica,
ao que parece matou um menino
da maneira que se segue,
sentindo-se sem culpa.
Afirma que grávida de dois meses
no porão da casa de uma dona
tentou abortar com duas injeções
dolorosas, diz ela,
mas sem resultado.
E bebeu pimenta em pó
com álcool, mas o efeito
foi apenas de purgante.
Mas vós, por favor, não deveis
vos indignar.
Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Seu ventre inchara, agora a olhos vistos
e ela própria, criança, ainda crescia.
E lhe veio a tal tonteira no meio do ofício das matinas
e suou também de angústia aos pés do altar.
Mas conservou em segredo o estado em que se achava
até que as dores do parto lhe chegaram.
Então, tinha acontecido também a ela,
assim feiosa, cair em tentação.
Mas vós, por favor, não vos indigneis.
Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Naquele dia, disse, logo pela manhã,
ao lavar as escadas sentiu uma pontada
como se fossem alfinetadas na barriga.
Mas ainda consegue ocultar sua moléstia
e o dia inteirinho, estendendo paninhos,
buscava solução.
Depois lhe vem à mente que tem que dar à luz
e logo sente um aperto no coração.
Chegou em casa tarde.
Mas vós, por favor, não vos indigneis.
Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Chamaram-na enquanto ainda dormia.
Tinha caído neve e havia que varrê-la,
às onze terminou. Um dia bem comprido.
Somente à noite pode parir em paz.
E deu à luz, pelo que disse, a um filho
mas ela não era como as outras mães.
Mas vós, por favor, não vos indigneis.
Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Com as últimas forças, ela disse, prosseguindo,
dado que no seu quarto o frio era mortal,
se arrastou até a privada, e ali,
quando não mais se lembra,
pariu como pôde quase ao amanhecer.
Narra que a esta altura estava transtornadíssima,
e meio endurecida e que o garoto, o segurava a custo
pois que nevava dentro da latrina.
Entre o quarto e a privada
o menino prorrompeu em pratos
e isso a perturbou de tal maneira, ela disse,
que se pôs a socá-lo
às cegas, tanto, sem cessar,
até o fim da noite.
E de manhã o escondeu então no lavatório.
Mas vós, por favor, não deveis vos indignar,
toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Maria Farrar, nascida em abril,
morta no cárcere de Moissen,
menina-mãe condenada,
quer mostrar a todos o quanto somos frágeis.
Vós que parís em leito confortável
e chamais bendito vosso ventre inchado,
não deveis execrar os fracos e desamparados.
Por obséquio, pois, não vos indigneis.
Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
___


Meninas e mulheres são consideradas criminosas quando tentam evitar que venham ao mundo crianças quase mortas, atiradas ao horror e à miséria. País subnutrido e analfabeto, onde as ricas pagam abortos em clínicas quase seguras. As outras são obrigadas a gestar nosso futuro doloroso. Brasil. Muitas ainda morrem com agulhas enfiadas no ventre. Ainda hoje. Ainda hoje. Quero livres: meu corpo, minha vagina, meu sexo e meu pensar.

14 novembro 2009

Não podemos viver eternamente rodeados de mortos e de morte. E se ainda restam preconceitos há que destruí-los. O "dever", digo bem, "O DEVER" do escritor, do poeta, não é encerrar-se covardemente em um texto, em um livro, em uma revista, de onde não mais se libertará, mas, pelo contrário, sair para fora e sacudir para atacar o espírito público, se não, para que serve? Para que nasceu?

Antonin Artaud - Manifesto Surrealista em Defesa da Libertação do Espírito.

23 outubro 2009

Se vai tentar
siga em frente.

Senão, nem começe!
Isso pode significar
perder namoradas
esposas, família, trabalho...
e talvez a cabeça.

Pode significar ficar sem comer por dias,
Pode significar congelar em um parque,
Pode significar cadeia,
Pode significar caçoadas, desolação...

A desolação é o presente
O resto é uma prova de sua paciência,
do quanto realmente quis fazer
E farei, apesar do menosprezo
E será melhor que qualquer
coisa que possa imaginar.

Se vai tentar,
Vá em frente.
Não há outro sentimento como este
Ficará sozinho com os Deuses
E as noites serão quentes
Levará a vida com um sorriso perfeito
É a única coisa que vale a pena.

Charles Bukowski - Poema recebido de um querido amigo. Saudade dos velhos tempos.

"A Liberdade do outro amplia a minha." - Bakunin

19 outubro 2009

"É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas a terra dada, não se abre a boca
É a conta menor que tiraste em vida
É a parte que te cabe deste latifúndio
É a terra que querias ver dividida
Estarás mais ancho que estavas no mundo
Mas a terra dada, não se abre a boca."

Funeral de um Lavrador - Chico Buarque e João Cabral de Melo Neto

18 outubro 2009

- Alô?
- Oi Clarinha, tudo bem?
- Não muito.
- O que houve querida?
- Ah. Acho que perdi duas amigas.
- Nossa! Mas por quê? E quem?
- Ah... Adivinha? A Si ficou puta comigo e, claro, a Tati foi atrás né, tomou as dores como sempre e ficou puta também... Ai que saco isso.
- Tá, mas me conta direito! O que aconteceu? (Curiosa e preocupada.)
- Ah sabe, eu ando tão doida com meu trabalho. Tu sabe né? Minha vida mudou de uma hora pra outra, tô sem tempo até pra respirar! Aí... Acabei esquecendo o aniver da Si. (Envergonhada.) Na verdade, não é que eu tenha esquecido, eu só não fui ao bar na segunda, realmente, não me lembrava que ela tinha marcado, lembrava do aniversário, até mandei uma mensagem pro celular... Putz, que saco isso. O pior é que eu tava ali por perto. Ela nunca vai me perdoar.
- Tá, e ela ficou braba. (Muda de tom, não está surpresa.)
- Sim guria! Furiosa! E eu nem sei o que fazer. É, ela me mandou um e-mail avisando, e o pior é que eu respondi. Isso foi na madrugada de sexta pra sábado, eu cheguei em casa bebaça né amiga, eu apaguei esse e-mail da minha memória!
- Tu respondeu o email e não foi na comemoração. É, a Si deve ter ficado furiosa mesmo... Mas olha, tem mais uma coisinha que tu não sabe. (Suspira, toma fôlego e começa a contar.) Ela marcou duas festas, uma pra ti ir e a outra pro Lúcio ir com a namorada... Tu sabe, ela nunca te perdoou por ter ficado com ele. Então ela fez essas duas festas e tu não apareceu... Certamente ficou furiosa. E... O Lúcio contou que ficou contigo de novo.
- Ah, sério? Ahhh eu não acredito nisso! Eu sabia que tinha alguma coisa errada nessa história. Eu sabia! Por isso então que ela tava tão braba!
- Pois é. O Lúcio não deveria ter contado. Ai esse guri também heim. Puxa.
- Ah. Que merda isso! (Aumenta o tom de voz gradualmente enquanto fala.) Olha, te digo uma coisa: tudo bem, sabe, eu sei que a fulaninha lá é amiguinha dela, mas nossa, o que é isso? Pô, tem que fazer duas festas pra eu não me encontrar com o Lúcio? O que ela pensa que é? Ela acha que eu sou criança agora? Tá achando que pode manipular a vida dos outros? Controlar tudo? (Clarinha tenta se controlar.) Ah... Agora quem tá braba sou eu. Pô, por que então ela não vai lá e conta pra fulaninha? Se ela acha tão errado assim, então que ela conte e eles que se resolvam! Eu não tenho nada a ver com isso! Fiquei com um cara que tem namorada sim, mas e daí? Eu realmente não tenho nada a ver, ele que se resolva com a fulaninha. Essa coisa aí de monogamia... Ah cara, sabe, que gente mais hipócrita. Todo mundo fica afim de outras pessoas, só que alguns reprimem por um tempo, uns mais, outros menos, mas uma hora a coisa explode. Claro cara! O Raul Seixas que dizia "se tu gosta de maçã irá gostar de todas", é, deve ser mais ou menos assim, o sentido é esse! Ai, amiga, desculpa me exaltei um pouco. (Acha graça do que diz.)
- Não, tudo bem. Mas, pois é, ela realmente está braba por tu ter encontrado o Lúcio de novo.
- É, entendi, só posso comer quem ela deixar. (Clarinha se enfurece enquanto a amiga dá gargalhadas ao telefone) Moralidadezinha ridícula. Ah cara, a Si não pode se meter nisso não! Se ela quer fazer alguma coisa, já disse, conta pra fulana! Eles que se resolvam, e se a guria vier tirar satisfações comigo eu me resolvo com ela! Eu assumo as coisas que eu faço ué! Mas triângulos de quatro pontas não existem, então, ela que fique fora disso. Tá, ela vai chegar dizendo pra mim “ah, se fosse contigo tu ia sofrer e isso e aquilo”; pois é querida, eu ia, mas a vida é assim! Acorda amor! Isso acontece toda hora! As pessoas não ficam juntas pra sempre! Ah, eu já traí, já fui traída, mas e daí? A vida continua meu bem! Bola pra frente, ninguém sofre a vida inteira por um amor não correspondido ou que não tenha sido o tal do “ideal de relacionamento”. Isso não existe! Bom, essa mulher da novela das oito sofre! Ai, os maus exemplos problemátcos...reprodução do machismo na TV, eita, isso sim me dói. (As duas riem muito, se divertem. A amiga retoma o ar sério.)
- É, tu sabe que a Si achava que eles eram um casal perfeito... Se espelhava naquele relacionamento, Clarinha...
- Ahh não! Agora eu sou culpada por ela acreditar em contos de fadas? Tenha dó heim. Por favor né, a Si que deixe de ser ingênua. Tá loco...tomá no cu esse tal de "controle".
(Gargalhadas.)

06 outubro 2009

O Amargo Santo da Purificação.

Canção dos Lírios

Eu canto à vida,
eu canto a liberdade,
como os lírios crescem
em nossos campos,
livres, selvagens.
Se já não crescem como antes,
existe algo sombrio,
é preciso abrir uma clareira no bosque.
Não me limitarei ao campo da arte...
e não escolherei momento,
tempo e modo,
de exaltar-te,
lírio, flor, canção, fruto,
amor - a liberdade.
Não calarei jamais
e sempre te direi a mais bela,
a mais pura.
Se já não crescem como antes os lírios
em nossos campos,
existe algo sombrio,
é preciso abrir uma clareira no bosque.

Carlos Marighella

21 setembro 2009

Impunidade

Campeões do Mundo

"Onde andam os campeões
guerreiros e ladrões
do mundo
imundo?
Onde estão essas crianças
milagre, esperanças,
iradas
quebradas?
Sem bandeiras, sem canções,
aprenderam as lições
de vida, de morte
de vida e morte."

...

Hoje faz um mês que Elton Brum foi assassinado, com um tiro nas costas, pela Brigada Militar.
Faz meses que Yeda continua impune.
Faz séculos que o povo é explorado.
Faz uma eternidade que o povo luta contra injustiças.
Faz tempo que poucos enriquecem com o trabalho de muitos.

...

Hoje eu estava lendo "Campeões do Mundo" de Dias Gomes, esse diálogo me fez lembrar do episódio ocorrido há um mês atrás, então, transcrevo-o aqui:


Müller - Você não percebe nada...Vocês...se dizem tão politizados e não entendem nem mesmo o momento que estão vivendo. Tudo isso é um resultado de uma decisão tomada em escalões superiores. Não posso fazer nada para mudar, nem acho que deva. É uma situação semelhante à de um território ocupado, onde, teoricamente, toda pessoa é um soldado inimigo em potencial. Nessas circunstâncias, as autoridades encarregadas da segurança nacional têm o direito de usar de violência, quando necessário.
Tânia - E matar?
Müller - Se for preciso.
Tânia - É essa então a filosofia.
Müller - E é uma filosofia baseada nos direitos da legítima defesa, de represália e de necessidade. Desenvolvida pelos maiores juristas do país, sabia?
Tânia - Entendo: vocês acharam uma justificativa moral para a imoralidade.
...

14 setembro 2009

Uma heroína e um herói.

“BRANCA: Há um mínimo de dignidade que o homem não pode negociar, nem mesmo em troca da liberdade. Nem mesmo em troca do sol.”

“BRANCA: Sabe as coisas que mais me divertem? Ler estórias e acompanhar procissão de formigas. Sério. Tanto nos livros como nas formigas a gente descobre o mundo. Quando eu era menina, conhecia todos os formigueiros do engenho. O capataz botava veneno na boca dos buracos e eu saía de noite, de panela em panela, limpando tudo. Depois ia dormir satisfeita por ter salvo milhares de vidas.”

“ZÉ-DO-BURRO: Nicolau não é um burro como os outros. É um burro com alma de gente. E faz isso por amizade, por dedicação. Eu nunca monto nele, prefiro andar a pé ou a cavalo. Mas de um modo ou de outro, ele vem atrás. Se eu entrar numa casa e me demorar duas horas, duas horas ele espera por mim, plantado na porta. Um burro desses, seu padre, não vale uma promessa?”

Branca Dias de "O Santo Inquérito" e Zé-do-Burro de "O Pagador de Promessas" personagens de Dias Gomes, gente do povo, simples mas que, acima de tudo, acredita e não desiste. Gente que luta defendendo sua verdade. Eles existem, existem sim.

12 setembro 2009

Dias Gomes - O Santo Inquérito

VISITADOR - Ajoelhe-se.
BRANCA - Ajoelhar-me diante de vós? Com ambos os joelhos?
VISITADOR - Sim, com ambos os joelhos.
BRANCA - Perdão, mas não posso fazer isso.
VISITADOR - Por que não?
BRANCA - Porque ninguém deve ajoelhar-se diante de uma criatura humana.
NOTÁRIO - E essa agora! Perdeu a cabeça? Não vê que está diante do visitador do Santo Ofício, representante do inquisidor-mor?

18 agosto 2009

Vicente

Esqueci de mim. De tudo! Senti-me no começo de uma grande busca, perto de algo terrível! O mundo parou e eu me transformei em um homem diante de sua razão. Foi aí que a pergunta brotou pela primeira vez: Quem sou eu? Quem? Era o canto que começava. Então, minha verdade saiu da terra, cresceu e ultrapassou a mata. Percebi...como devia ser maravilhoso compreender, interpretar e transmitir! Partir da minha casa, minha gente, de mim mesmo...e chegar ao significado de tudo, tendo como instrumentos de trabalho apenas as palavras e a vontade. Não usar nenhum suor, a não ser o meu. Nenhum braço, além dos meus. Nenhuma inteligência, exceto a minha. Isto era ser livre! Eu me comunicaria! Seria tudo!
Existem nessa cidade cinco milhões de habitantes! Como levar a eles o que é preciso dizer?
Há muitas coisas em minha vida, Lavínia, pedindo explicações. De muitas, lembro-me bem. Mas, são as escondidas que nos atormentam. As que ficam perdidas não sei em que imobilidade, agarradas às paredes como hera, guardadas em fundo de gaveta de cômodas velhas, refletidas em caixilhos, escondidas dentro de nós...!
Por que não posso ser o que sou? Escapar desse mundo, caduco para mim, e me comunicar...de uma maneira ou de outra. Deve haver algum meio! Mas sinto que falta sentido em tudo! Será que estou no caminho errado Lavínia? Vivemos numa sociedade em crise, de estruturas abaladas, valores negados, soluções salvadoras que não levaram a nada! Qual o caminho certo? Onde achar a resposta? No presente? No passado? Será que fiquei apenas em lamentações sobre a decadência...sem ter saído dela? Não posso passar a vida perguntando quem sou eu! Será que a incompreensão tem sido minha? A verdade já estará solta nas ruas...e eu não estou vendo? Tenho procurado resposta e não encontro. De tanto viver perguntas sem resposta, vou acabar andando à minha volta...e não chegarei nunca a uma solução.

"É que...já não sei até que ponto...tudo que quero dizer tem importância." - Vicente com 5, 15, 23 e 43 anos de idade. Encontrou a resposta? Nem ele sabe. Alguns trechos das falas do personagem em Rasto Atrás de Jorge Andrade.
Parecia que havia destruído um mundo dentro de mim e não conseguia substituí-lo. Eu sei que o fracasso também é positivo, mas quando se tem coragem de voltar-se para dentro de si mesmo e avaliar os erros que cometemos. Devo aproveitá-lo para entender-me...e criar alguma coisa. Para isso, preciso compreender esse passado e me libertar. Pensei que tivesse encontrado a explicação da angústia, de minha vida. Agora, vejo que tenho mentido. A pior coisa que pode acontecer a um autor, Lavínia, é perceber que mente e não saber como sair da mentira.

Vicente, personagem de Rasto Atrás de Jorge Andrade

16 agosto 2009

"Você é mais um conjunto de reações do que propriamente um ser humano."

Essa doeu.

11 agosto 2009

Acordou com ótimo humor, isso sempre acontecia depois de passar a noite lendo algo que lhe dava prazer, mas a briga com o melhor amigo fora inevitável. Luzia ficou pensativa. Ele pedira desculpas, mas o ocorrido não se apagaria, a cabeça ardia - dissera tudo? A imaginação a levaria longe, melhor seria parar de pensar. Tudo bem - Luzia respirou fundo - Até a noite restam muitas horas e elas precisam passar macias. Um telefonema, mais uma noite sozinha, a amiga que lhe faria companhia para ir ao cinema acabara de brigar com o namorado. Tudo bem - Estava acostumada e o fim do expediente se aproximava, iria, enfim, descansar. Depois de quase atropelar um cachorro, chegou em casa com o coração vazio de sempre. Faria algo simples para comer. Queria deitar-se, esquecer-se do quanto estava sozinha, esquecer-se do quanto era difícil continuar com tudo aquilo. Antes de dormir, escolheria para ler o que pudesse traduzir o que vivera hoje, assim poderia aliviar-se, e, quem sabe, acordar de bom humor.
O telefone tocou, uma amiga de longe, disse "Lú, tô grávida. Tu vai ser Dinda!"

- Cara, cara, uau!

E com essa notícia o peito de Luzia se encheu: era amor brotando. Daria amor, amor incondicional ao serzinho que chegaria logo mais. Delícia!

- Vida nova chegando! Oba, oba!

Desligou. Por alguns instantes refletiu: talvez fosse egoísta. Mas, com tranquilidade e um sorriso leve nos lábios foi dormir.

10 agosto 2009

O Ovo

Eu brincava com as crianças, as crianças brincavam comigo. Como todo o mundo vezenquando a gente brigava, pisava caco de vidro, roubava laranja, fugia pra tomar banho no rio. Uma vez também uma menina segurou no meu pinto. Ela era loira, gorda, tinha um tranção até a cintura. Depois ela casou com um soldado da brigada, prendeu as tranças em volta da cabeça, mas continuou gorda. Dessas gordas que à tardinha se debruçam na janela sobre uma almofada de cetim rosa. Toda vez que eu vinha do emprego passava em frente à casa dela e olhava exatamente como quem pensa "você uma vez segurou no meu pinto". Lógico, ela não me cumprimentava. Acho que não é muito comum as meninas que seguram nos pintos dos meninos cumprimentarem eles depois que crescem e casam.
Quando eu tinha uns treze anos arranjei uma namorada que namorei até os dezessete. Essa nunca segurou no meu pinto, e era diferente, dessas pra casar pelo menos naquela época eu pensava assim. Só há pouco tempo, depois que vim para cá, é que me convenci de que são todas umas vacas. E os homens, uns cães. Todos eles sabendo e fingindo que não sabem. A mãe da minha namorada ficava a noite inteira sentada com a gente na sala, só levantava para trazer doce de leite, de abóbora ou de batata-doce. A menina vezenquando tocava piano, mal para burro, diga-se de passagem. Mas eu nem ouvia direito. É que quando ela sentava um pedaço da saia levantava e apareciam umas coxonas muito brancas e grossas. Eu olhava discreto, o máximo que fazia era derrubar alguma coisa no chão pra ver melhor. Eu era um moço de respeito.
Quando tinha dezoito anos, ela casou. Com um soldado da brigada. Foi então que pensei seriamente em entrar para a brigada, já que duas mulheres da minha vida tinham casado com soldados. Parecia que eu estava destinado a sempre perdê-las para eles. Só que eu achava horrível aquela roupa, os coturnos, o casquete -tudo. Mas se eu queria casar - e naquele tempo eu queria - tinha que ser soldado. Até que descobri uma solução melhor. Perto da minha casa morava um soldado da brigada. A minha mãe era madrinha dele, a mãe dele era viúva. Quando crianças, nós brincávamos muito, mas era um guri esquisito como o diabo. Todo delicado, cheio de não-me-toques, loirinho,com uns olhos claros, uma cor que eu nunca mais consegui lembrar depois que ele se matou. Todos os sábados de manhã ele ia visitar mamãe, levava umas frutas ou doce qualquer que a mãe dele tinha feito e ficava conversando na sala, feito moça. Logo que minha namorada casou eu nem olhava pra ele, de tanto ódio. Depois comecei a armar uma vingança. Quando ele chegava eu ficava passando na sala sem camisa, às vezes até sem calças, só de cuecas. Ele ficava todo perturbado e desviava os olhos. Eu sentava perto, encostava a perna, piscava um olho pra ele na hora de apertar a mão. Um dia convidei-o pra fazer uma pescaria comigo. Levamos uma barraca, cobertores, pinga, duas dessas camas de armar. E de noite eu comi ele. Com gosto. Como se estivesse com o pau na bunda de todos os soldados da brigada do mundo. Ele nunca mais foi lá em casa, a minha mãe reclamava, parava ele na rua para perguntar por quê. Até que ele tomou formicida e morreu.
Aí nasceu o meu irmão. Não tem nada a ver uma coisa com a outra, mas não posso fazer nada se meu irmão nasceu mesmo quando ele morreu. Nasceu direitinho e tudo, mas quando tinha uns seis meses começou a definhar, definhar, e morreu de caganeira verde. Foi bom. Senão seria mais um filho da puta. Ou soldado da brigada, o que dá no mesmo. Mas no dia em que ele morreu, eu não pensei assim. Subi em cima da montanha e fiquei olhando o mundo. Agora eu penso que se ele não tivesse morri do eu não teria subido na montanha, e se não tivesse subido na montanha não teria visto o que vi. Mas as coisas são porque têm que ser, não adianta nada a gente querer que sejam de outro jeito. Então ele morreu, eu subi na montanha e vi. O mundo.

Trecho do conto "O Ovo" do Caio Fernando Abreu

07 agosto 2009

- Olha, quantos anos tu tem? Conversa comigo. Tu tá todo sujo de sangue. Te ofereceria um gole da minha bebida...O que houve, tu cheirou? Hum, imaginei. Olha, tu tá com a cara toda suja, tem sangue nas tuas mãos. (Menino passa a mão no nariz a fim de limpar o sangue que escorre pelas narinas.) Hum, tu já viu aquela cena do Pulp Fiction? (O menino não consegue falar, está com os olhos estalados de tanto pó que cheirou.)
- Oi, voltei.
- Ah, ótimo, trouxe a cerveja? Olha só esse cara aqui, acho que ele andou cheirando demais.
- Hum, tu cheirou cara? Olha, eu tenho desvio de septo, cada vez que eu cheiro eu faço um estrago, tu tem isso também? Algum outro problema?
(O Menino me olhava fixamente)
- Cara, eu sei que ela é linda, mas não te apaixona.
(Menino sorri.)
- Hum, olha só querido, acho melhor tu ir no banheiro e lavar o rosto e as mãos porque desse jeito tu não vai pegar ninguém nessa festa. O que tu acha?
(O menino sorri para mim, passa as mãos no nariz espalhando mais o sangue pelo rosto sujando-o ainda mais. Levanta-se e vai em direção ao banheiro)
- É acho que ele ficou afim de ti.
- Pode ser.

Diários de Samantha Wolf - uma de suas noites.

05 agosto 2009

Um pouco de Clarice e o livro dos prazeres

Ainda era cedo para acender as lâmpadas, o que pelo menos precipitaria uma noite. A noite que não vinha, não vinha, não vinha, que era impossível. E o seu amor que agora era impossível — que era seco como a febre de quem não transpira, era amor sem ópio nem morfina. E "eu te amo" era uma farpa que não se podia tirar com uma pinça. Farpa incrustada na parte mais grossa da sola do pé. Ah, e a falta de sede. Calor com sede seria suportável. Mas ah, a falta de sede. Não havia senão faltas e ausências. E nem ao menos a vontade. Só farpas sem ponta salientes por onde serem pinçadas e extirpadas. Só os dentes estavam úmidos. Dentro de uma boca voraz e ressequida os dentes úmidos mas duros — e sobretudo a boca voraz para nada. E o nada era quente naquele fim de tarde eternizada pelo planeta Marte. Seus olhos abertos e diamantes. Nos telhados os pardais secos. "Eu vos amo, pessoas", era frase impossível. A humanidade lhe era como morte eterna que no entanto não tivesse o alívio de enfim morrer. Nada, nada morria na tarde enxuta, nada apodrecia. E às seis horas da tarde fazia meio-dia. Fazia meio-dia com um barulho atento de máquina de bomba de água, bomba que trabalhava há tanto tempo sem água e que virará ferro enferrujado: há dois dias faltava água em diversas zonas da cidade. Nada jamais fora tão acordado como seu corpo sem transpiração e seus olhos-diamantes, e de vibração parada. Nem mesmo a angústia. O peito vazio, sem contração. Não havia grito. Dor? Nenhuma. Nenhum sinal de lágrima e nenhum suor. Sal nenhum. Só uma doçura pesada: como a da casca lenta dos elefantes de couro ressequido. A esqualidez límpida e quente. Pensar no seu homem? Não, era a farpa na parte coração dos pés. Ah, se as mãos começassem a se umedecer. Nem que houvesse água, por ódio não se banharia. Era por ódio que não havia água. Nada escorria. A dificuldade era uma coisa parada. E uma jóia diamante. A cigarra de garganta seca não parava de rosnar. Por seco e calmo ódio, quero isso mesmo, este silêncio feito de calor que a cigarra rude torna sensível. Sensível? Não se sente nada. Senão esta dura falta de ópio que amenize. Quero que isto que é intolerável continue porque quero a eternidade. Quero esta espera contínua como o canto avermelhado da cigarra, pois tudo isso é a morte parada, é a Eternidade de trilhões de anos das estrelas e da Terra, é o cio sem desejo, os cães sem ladrar. É nessa hora que o bem e o mal não existem. É o perdão súbito, nós que nos alimentávamos com gosto secreto da punição. Agora é a indiferença de um perdão. Pois não há mais julgamento. Não é um perdão que tenha vindo depois de um julgamento. É a ausência de juiz e condenado. E não chove, não chove. Não existe menstruação. Os ovários são duas pérolas secas. Vou vos dizer a verdade: por ódio seco, quero é isto mesmo, e que não chova.

Clarice Lispector - Trecho de "A Origem da Primavera ou A Morte Necessária em Pleno Dia".

04 agosto 2009

"Declamações entre latas de lixo e a suave soberana luz da mente"

Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite, que pobres, esfarrapados e de olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando sobre os tetos das cidades contemplando jazz, que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevados, que passaram por universidades com olhos frios e radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de William Blake entre os estudiosos da guerra, que foram expulsos das universidades por serem loucos e publicarem odes obscenas nas janelas do crânio, que se refugiaram em quartos de paredes de pintura descascada em roupa de baixo queimando seu dinheiro em cestas de papel, escutando o Terror através da parede.
Flagelaram seus torsos noite após noite com sonhos, com drogas, com pesadelos na vigília, álcool e caralhos e intermináveis orgias, incomparáveis ruas cegas sem saída de nuvem tremula e clarão na mente, iluminando completamente o mundo imóvel do Tempo intermediário, porre de vinho nos telhados, cabeça feita do prazer, vibrações de sol e lua e árvore no ronco de crepúsculo de inverno, declamações entre latas de lixo e a suave soberana luz da mente, trêmulos, a boca arrebentada e o despovoado deserto do cérebro esvaziado de qualquer brilho. Batalhão perdido de debatedores platônicos saltando dos gradis das escadas de emergência dos parapeitos das janelas do Empire State da Lua, tagarelando, berrando, vomitando, sussurrando fatos e lembranças e anedotas e viagens visuais e choques nos hospitais e prisões e guerras, intelectos inteiros regurgitados em recordação total com os olhos brilhando por sete dias e noites. Vaguearam famintos e sós procurando jazz ou sexo ou rango, distribuíndo folhetos ininteligíveis, que apagaram cigarros acesos nos seus braços protestando contra o nevoeiro narcótico de tabaco do Capitalismo, que distribuíram panfletos supercomunistas em Union Square, chorando e despindo-se enquanto as sirenes de Los Alamos os afugentavam gemendo mais alto que eles. Morderam policiais no pescoço e berraram de prazer nos carros de presos por não terem cometido outro crime a não ser sua transação pederástica e tóxica, que uivaram de joelhos no Metrô e foram arrancados do telhado sacudindo genitais e manuscritos, que se deixaram foder no rabo por motociclistas santificados e urraram de prazer, que enrabaram e foram enrabados por esses serafins humanos, os marinheiros, carícias de amor atlântico e caribeano, que transaram pela manhã e ao cair da tarde em roseirais, na grama de jardins públicos e cemitérios, espalhando livremente seu sêmem para quem quisesse vir, que soluçaram interminavelmente tentando gargalhar mas acabaram choramingando atrás de um tabique de banho turco onde o anjo loiro e nu veio atravessá-los com sua espada, que perderam seus garotos amados para as três megeras do destino, a megera caolha do dólar heterossexual, a megera caolha que pisca de dentro do ventre e a megera caolha que só sabe ficar plantada sobre sua bunda retalhando os dourados fios intelectuais do tear do artesão, que copularam em êxtase insaciável com uma garrafa de cerveja, uma namorada, um maço de cigarros, uma vela, e caíram da cama e continuaram pelo assoalho e pelo corredor e terminaram desmaiando contra a parede com uma visão da buceta final e acabaram sufocando um derradeiro lampejo de consciência, que adoçaram as trepadas de um milhão de garotas trêmulas ao anoitecer, acordaram de olhos vermelhos no dia seguinte mesmo assim prontos para adoçar trepadas na aurora. Que jogaram seus relógios do telhado fazendo seu lance de aposta pela Eternidade fora do Tempo e despertadores caíram nas suas cabeças por todos os dias da década seguinte, que cortaram seus pulsos sem resultado por três vezes seguidas, desistiram e foram obrigados a abrir lojas de antigüidades onde acharam que estavam ficando velhos e choraram. Cantaram desesperados nas janelas, jogaram-se pela janela do metrô, choraram pela rua afora, dançaram sobre garrafas quebradas de vinho descalços arrebentando nostálgicos discos de jazz europeu dos anos 30 na Alemanha, terminaram o whisky e vomitaram gemendo no toalete sangrento, lamentações nos ouvidos e o sopro de colossais apitos a vapor, que mandaram brasa pelas rodovias do passado viajando pela solidão da vigília de cadeia, que guiaram atravessando o país durante setenta e duas horas para saber se eu tinha tido uma visão ou se você tinha tido uma visão ou se ele tinha tido uma visão para descobrir a Eternidade e finalmente partiram para descobrir o Tempo.

Alguns trechos selecionados de "Howl" de Allen Ginsberg

02 agosto 2009

A: Você é meu companheiro.
B: Hein?
A: Você é meu companheiro, eu disse
B: O quê?
A: Eu disse que você é meu companheiro.
B: O que é que você quer dizer com isso?
A: Eu quero dizer que você é meu companheiro. Só isso.
B: Tem alguma coisa atrás, eu sinto.
A: Não. Não tem nada. Deixa de ser paranóico.
B: Não é disso que estou falando.
A: Você está falando do quê, então?
B: Estou falando disso que você falou agora.
A: Ah, sei. Que eu sou teu companheiro.
B: Não, não foi assim: que eu sou teu companheiro.
A: Você também sente?
B: O quê?
A: Que você é meu companheiro?
B: Não me confunda. Tem alguma coisa atrás, eu sei.
A: Atrás do companheiro?
B: É.
A: Não.
B: Você não sente?
A: Que você é meu companheiro? Sinto, sim. Claro que eu sinto. E você, não?
B: Não. Não é isso. Não é assim.
A: Você não quer que seja isso assim?
B: Não é que eu não queira: é que não é.
A: Não me confunda, por favor, não me confunda. No começo era claro.
B: Agora não?
A: Agora sim. Você quer?
B: O quê?
A: Ser meu companheiro.
B: Ser teu companheiro?
A: É.
B: Companheiro?
A: Sim.
B: Eu não sei. Por favor não me confunda. No começo era claro. Tem alguma coisa atrás, você não vê?
A: Eu vejo. Eu quero.
B: O quê?
A: Que você seja meu companheiro.
B: Hein?
A: Eu quero que você seja meu companheiro, eu disse.
B: O quê?
A: Eu disse que eu quero que você seja meu companheiro.
B: Você disse?
A: Eu disse?
B: Não, não foi assim: eu disse.
A: O quê?
B: Você é meu companheiro.
A: Hein?


Diálogo retirado do livro Morangos Mofados do Caio Fernando Abreu.

16 julho 2009

Só nós mulheres sabemos o quanto é difícil viver em uma sociedade patriarcal. O machismo impera em todas as formas de comunicação e todos os tipos de relação. Ter consciência e tentar driblar não é simples, pelo contrário, é doloroso e agressivo ter de lidar com a tamanha incoerência dessa "lógica" cultural. Perceber as formas de dominação, transpor os pensamentos que nos consomem e os limites que nós próprias nos damos, como por exemplo, o medo de enfrentar força física, são obstáculos que superamos para combater o machismo de frente; são atitudes difíceis mas necessárias. Nós mulheres não somos frágeis e fracas, não somos bonecas choronas e nem princesinhas que precisam de proteção, não somos carentes e nem histéricas irracionais, tentaram nos fazer crer nesta farsa. Os homens sempre nos dominaram, pais, irmãos, companheiros; fomos escravas, fomos prêmios, nossa virgindade foi prêmio, nosso sexo sempre foi tabu, disseram que éramos inferiores.
Agora chega. Sou só minha, inteiramente minha.

13 julho 2009

Eles acreditavam que não chegaríamos nunca. No entanto, nada nos deteve. Eu sei, agora a fuga não é mais o caminho. Eu sei que as fronteiras estão fechadas, que nas poucas brechas que havia, eles levantaram mastros. Eu sei. Eu sei da força, da ordem, do fuzil e da armadilha. Eu sei. Eu sei! Mas eu creio numa coisa maior! Me dizendo que a gente consegue. Não importa, não se apela aos covardes. Nem aos cansados da viagem. Somos covardes? Estamos cansados? Como contar com os outros se um a um foram massacrados? Porque então a nossa luta? A razão se esvazia e no final o silêncio prevalece? Não. Eu creio em algo maior dizendo que a gente consegue. E eu sei, a gente consegue.

Livremente inspirado na peça "Patética" de João Ribeiro Chaves Neto.

08 julho 2009

Conto Erótico.

- Só estavamos aqui tentando estudar, eu juro.

03 julho 2009

Eurídice

Uma pessoa tem um corpo,
Um só, sozinho.
A alma já está farta
De ficar confinada dentro
De uma caixa, com orelhas e olhos
Feita de pele - só cicatrizes -
Cobrindo um esqueleto.

Pela córnea ela voa
Para a cúpula do céu,
Sobre um raio gélido,
Até uma rodopiante revoada de pássaros,
E ouve pelas grades
Da sua prisão viva
O crepitar de florestas e milharais
O troar de sete mares.

Uma alma sem corpo é pecaminosa
Nenhuma inteção, nem um verso.
Uma charada sem solução:
Quem vai voltar
Ao salão depois do baile,
Quando não há ninguém para dançar?

E eu sonho com uma alma diferente
Vestida com outras roupas:
Que se inflama enquanto corre
Da timidez à esperança;
Pura e sem sombra,
Como fogo, ela percorre a Terra,
Deixa lilases sobre a mesa
Para que se lembrem dela.

Então continua a correr, criança, não te aflige
Por causa da Eurídice;
Continua a rodar teu aro de cobre,
Corre com ele mundo afora,
Enquanto, em notas firmes
De tom alegre e frio,
Em resposta a cada passo que deres,
A Terra soar em teus ouvidos.

- Arseni Tarkovski -

Depois de resgatá-la, com sua música, Orfeu olhou para trás antes de chegar a superfície, e assim perdeu Eurídice para sempre.

02 julho 2009

O ar é aquela coisa que se move em torno da cabeça e se torna mais claro quando você ri.

Posso sentir várias coisas ao mesmo tempo, o caminho do nosso coração é coberto de sombras, precisamos ouvir as vozes que nos parecem inúteis. Precisamos encher as orelhas e os olhos de todos nós com sonhos, com coisas de sonhos. Precisamos alimentar o desejo e esticar os cantos da alma como um lençol sem fim.
Se querem que o mundo vá adiante devemos nos dar as mãos. Precisamos mesclar os ditos saudáveis com os ditos doentes.
Vocês sãos! O que significa sua saúde? Os olhos da humanidade miram o abismo no qual estamos todos mergulhando. A liberdade é inútil se você não tem coragem de olhar em nossos olhos, de comer conosco e de beber conosco. São os ditos sãos que levaram o mundo a beira da catástrofe. Homens escutem!
Grandes coisas acabam, só as pequenas permanecem. Basta observar a natureza para se ver que a vida é simples. Precisamos voltar ao ponto onde tomamos o caminho errado. Precisamos voltar ao fundamento da vida sem sujar a água. Que tipo de mundo é este se é um louco que lhes diz que devem envergonhar-se?! Ó mãe! O ar é aquela coisa que se move em torno da cabeça e se torna mais claro quando você ri.
Dito por um Louco.
Trechos retirados de "Nostalgia", filme de Tarkovski, escrita livremente adaptada.

25 junho 2009

A produção intelectual está baixa por aqui,
porém,
a reprodução cultural vai indo bem!
Encontrei um sebo cheio de Drummond
vazio de Cecília Meireles;
trouxe "Poesia Errante"
pra fazer par com o Alento e
também um incenso de Alecrim.
Meu Quintana continua no bolso,
acompanhando o mineirinho,
Caio num PDF e quero muito mais de Brecht.


Amanhã Maratona Literária

24 junho 2009

ninguém é superior a ninguém

aos intelectuais -
"Eu sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso, eu amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo, que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade."

aos revolucionários -
"É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática."
"Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela coerentes."

aos educadores -
"Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda".

delícia de viver -
"Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Está é a diferença profunda entre o ser condicionado e o ser determinado."

à toda gente -
"Amar é um ato de coragem."


Paulo Freire - "Não se pode falar em educação sem amor", em revolução também não.

23 junho 2009

Kassandra - Adubaste com sangue esta terra. Fartaste de corpos humanos uma indústria. Nas tuas máquinas trituradoras, tu, o cão sanguinário. A tua propriedade privada são dois pares de botas. Dizias tu, quando te perguntaram pelos teus cadáveres: "acaso os contaste?". Já não podes contá-los porque são o chão em que pisamos em direção ao teu futuro radioso. A humanidade é um triste material. Humanamente material. Formigas em baixo da bota. Ontem para o teu amanhã. Vejo a chegada de uma época onde os reis bárbaros governam um mundo cheio de vícios, onde homens audaciosos e maus vivem vidas curtas, têm os cabelos brancos aos dezesseis anos e copulam com animais. Suas mulheres prostitutas fazem amor com bocas de cobiça. As vacas são secas e estéreis. Já não há mais flores e nem pureza, só ambição, corrupção, comércio. Eu não poderia amar um herói. Eu não quero assistir à tua metamorfose em monumento público. Ainda bem, Enéias, que tu nunca disseste que isso não te aconteceria ou que tu poderias me livrar de tudo isso. O que se pode fazer contra uma época que necessita de heróis? Que a dor nos faça lembrar um do outro. Por ela será que nos reconheceremos mais tarde, caso exista um mais tarde.
...
Eumelo - Kassandra, ninguém é feliz sem fazer mal aos outros. É a ordem da terra.
Kassandra - Eu não nasci para consentir nessa ordem.
Eumelo - E quem é que pede para consentires? A ordem do mundo não mudará o sabor dos teus desejos. Se queres mudá-la, abandona os teus sonhos e toma conhecimento da realidade.
Kassandra - Eu já conheço a receita. É preciso matar para suprimir a injustiça. Há séculos que isso dura. Há séculos que os senhores da tua raça apodrecem a chaga do mundo sob o pretexto de curá-la. E, no entanto, continuam a vangloriar-se de sua receita, uma vez que ninguém lhes riu na cara.
Eumelo - Basta olhar para os homens e verás que qualquer justiça é bastante boa para eles. Então, já sabes. Eles te deixarão sempre só. E aquela que está sozinha deve morrer.
Kassandra - Não, é uma tese falsa. Se eu estivesse só, tudo seria fácil. Mas, por bem ou por mal, eles estão comigo.
Eumelo - Belo rebanho, pena que cheira mal.
Kassandra - Eles não são puros. Eu também não sou. Além do mais, nasci entre eles. Vivo para minha cidade e para a minha época.
Eumelo - Veste os teus homens livres com o uniforme da minha polícia e verás no que eles se transformam.
Kassandra - É verdade que lhes acontece serem covardes e cruéis. É por isso que não têm mais do que tu o direito ao poder. Homem nenhum, nenhum, tem virtude o suficiente para que lhe possa ser permitido o poder absoluto. Eu só desprezo os carrascos. Faças o que fizeres, esses homens sempre serão maiores do que tu. Se lhes acontecer, de alguma vez, matar, é na loucura de um instante. Tu, não. Tu massacras segundo a lei e a lógica. Não rias de seu ar de temor. Há séculos o cometa do medo passa por cima deles. Há séculos eles morrem e seu amor é dilacerado. O maior de seus crimes terá sempre uma desculpa. Mas não encontro desculpas para o crime que, em todos os tempos, tens cometido contra eles e que, para arrematar, tiveste a idéia de codificar nessa imunda ordem que é a tua. Eu não baixarei os olhos. Agora eu entendo o que me foi imposto "tu dirás a verdade, mas ninguém acreditará em ti". Alí estava o ninguém que deveria me crer. Que não foi capaz de crer porque não acreditava em nada. Um ninguém incapaz de crer. Que, ao menos, o meu ódio sobrevivesse. Que brote do meu túmulo o ódio. E eu? Haverá um mundo, um tempo, um lugar pra mim? Ninguém a quem possa perguntar. Essa é a resposta.

Fragmentos de Kassandra In Process baseados em "Germania 3 Morte em Berlim" de Heiner Muller, em "Estado de sítio" de Albert Camus e ainda em "Medéia. Vozes." de Christa Wolf.

20 junho 2009

Cena da peça "Patética" de João Ribeiro Chaves Neto

Glauco - Joana, por que o circo está fechando?
Joana - Dívida. Dinheiro curto. Os donos do terreno tão tirando ele da gente. Porque perdemos a demanda. É, teve uma demanda!...Quiseram subir o preço. Só vendo. O circo não podia. O que pagava já era muito. E eles sempre pediam mais. A gente tentou. Tentou de tudo. A gente foi falar com o Prefeito. Que não recebeu. E com o Secretário da Cultura. Que recebeu pra dizer que o circo não tinha nível. Pior ainda: mandou pôr no jornal que a gente tinha era que morrer mesmo.
Glauco - E você, o que pensa? Tem nível?
Joana - Tem. Tem sim!...Quanta coisa bonita se vê aqui. Coisa boa de se pensar e discutir. Parece só um bate-papo com quem tá sentado aí na frente. Mas eles aprendem e gostam que só vendo. A gente ensina...
Glauco - Ensina o que?
Joana - Que a vida...Que não se pode viver só pra comer, dormir. O circo ensina o outro lado.
Glauco - Que outro lado é esse?
Joana - O lado das coisas que não se diz. Porque não é preciso dizer não.
Glauco - Você sabe quem foi Shakespeare?
Joana - Quem foi sei não. Mas sei que escreveu o Otelo e a Megera, duas peças que fiz aqui. Sucesso todas duas.
Glauco - Vocês não tem receio de levar esses autores? Vocês pagam direitos autorais? Vocês não pensam que podem protestar contra o que estão fazendo?
Joana - Por que haviam de achar ruim? A gente faz direito. Como manda no papel!...As palavras que não se entende, Bolota explica. E, se for muito difícil, muda. A peça sai bem feita. Sai sim!...Então por que é que não iam gostar?
Glauco - Deixa pra lá, Joana. Eu quero saber agora se o público, esse que vem aqui, não acha o trabalho de vocês uma chatice.
Joana - Não! Acha não, senhor! Bate palma e volta sempre. Nós nunca acendemos a luz com menos de cinquenta pessoas. E antigamente, quando o circo era itinerante, vinha muito escritor trazer peça pra gente. Querendo que se levasse.
Glauco - E vocês levavam?
Joana - Se o Bolota achava bom, levava! Foi assim com a peça do Seu Zé Vicente. Aquela que morria todo mundo no fim.

17 junho 2009

"a propriedade é o grande valor do direito penal. Basta ver que a pena do furto é maior do que a pena de tortura"

Por que a Justiça não pune os ricos.
Por Tatiana Merlino
"Maria Aparecida evita olhar para sua imagem refletida no espelho. Faz quatro anos que a jovem paulistana saiu da cadeia, mas, nem que quisesse, conseguiria esquecer o que sofreu durante um ano de detenção. Seu reflexo remonta ao ocorrido no Cadeião de Pinheiros, onde esteve presa após tentar furtar um xampu e um condicionador que, juntos, valiam 24 reais.
Lá, Maria Aparecida de Matos pagou por seu “crime”: ficou cega do olho direito. Portadora de “retardo mental moderado”, a ex-empregada doméstica foi detida em flagrante em abril de 2004, quando tinha 23 anos. Na delegacia, não deixaram que telefonasse para a família. Foi mandada diretamente para a prisão, onde passou a dividir uma cela com outras 25 mulheres.
Em surto, a jovem não dormia durante a noite, comia o que encontrava pelo chão, urinava na roupa. Passado algum tempo, para tentar encerrar um tumulto, a carceragem lançou uma bomba de gás lacrimogêneo na área das detentas. Uma delas resolveu jogar água no rosto de Maria Aparecida, e a mistura do gás com o líquido fez com que seu olho fosse sendo queimado pouco a pouco. "Parecia que tinha um bicho me comendo lá dentro", conta.
A pedido das colegas de pavilhão, que não aguentavam mais os gritos de dor e os barulhos provocados pela moça, ela foi transferida para o "seguro", onde ficam as presas ameaçadas de morte. Maria Aparecida passou a apanhar dia e noite. "Eu chorava muito de dor no olho, e elas começaram a me bater com cabo de vassoura", relembra, emocionada. Somente quando compareceu à audiência do seu caso, sete meses depois de ter sido detida, sua transferência para a Casa de Custódia de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, foi autorizada. Lá, diagnosticaram que havia perdido a visão do olho direito.
Foi nessa época que sua irmã Gisleine procurou a Pastoral Carcerária, que a encaminhou para a advogada Sonia Regina Arrojo e Drigo, vice-presidente do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Sonia entrou com um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, que foi negado. Apelou, então, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, em maio de 2005, concedeu liberdade provisória à jovem, 13 meses depois de ter sido presa por causa de 24 reais. A advogada também entrou com um pedido de extinção da ação, baseando-se no “princípio da insignificância”, aplicado quando o valor do patrimônio furtado é tão baixo que não vale a pena a justiça dar continuidade ao caso. No entanto, até hoje, o processo não foi julgado, e Maria Aparecida continua em liberdade provisória. A situação indigna Gisleine. "É um descaso muito grande. Já era para esse julgamento ter acontecido. Minha irmã pagou muito caro por esse xampu que não chegou a utilizar", critica. "Tem gente que não precisa estar na cadeia. Existem penas alternativas e o caso dela não seria de prisão, mas sim de internação, já que desde os 14 anos ela toma medicação controlada", afirma.
Justiça seletiva
O mesmo recurso jurídico – o habeas corpus – pedido pela advogada Sonia Drigo para que Maria Aparecida respondesse ao processo em liberdade foi solicitado e concedido, em 24 horas, a outra mulher. Mas um “pouco” mais rica: a empresária Eliana Tranchesi, proprietária da butique de luxo Daslu, em São Paulo, condenada em primeira instância a uma pena de 94,5 anos de prisão. Três pelo crime de formação de quadrilha, 42 por descaminho consumado (importação fraudulenta de um produto lícito), 13,5 anos por descaminho tentado e mais 36 por falsidade ideológica.
Somando impostos, multas e juros, a Justiça diz que a Daslu deve aos cofres públicos 1 bilhão de reais. Os representantes da empresa contestam esse valor, mas afirmam que já começaram a pagar as dívidas. A sentença inclui ainda o irmão de Eliana, Antonio Carlos Piva de Albuquerque, diretor financeiro da Daslu na época dos fatos, e Celso de Lima, dono da maior das importadoras envolvidas com as fraudes, a Multimport.
(...)
De acordo com juristas e analistas ouvidos pela reportagem da Caros Amigos, a diferença de tratamento dispensado a casos como o de Maria Aparecida e Eliana Tranchesi acontece porque, embora na teoria a lei seja a mesma para todos, na prática, ela funciona de forma bem distinta para os representantes da elite e para os pobres.
(...)
Em relação a casos penais, isso também ocorre, "como quando uma pessoa com muitos recursos financeiros é acusada – Paulo Maluf, por exemplo. Nesse caso, ela é capaz de bloquear o andamento do processo até que a pena esteja prescrita. A agilidade em decidir a prisão ou soltura de uma pessoa também varia, de acordo com sua classe social", aponta Koerner. A diferença é que "um acusado de classe menos favorecida não será capaz de usar as oportunidades permitidas pelo processo".
(...)
Mazina sustenta que a justiça brasileira é constituída para não ser popular. Em sua avaliação, desde a formação da legislação, há uma preocupação muito maior com a preservação patrimonial em detrimento da proteção da integridade física. Isso contribui, portanto, para a criminalização das camadas mais baixas da população, mais propensas, por sua condição social, a cometerem delitos contra o patrimônio. "Há um acirramento da legislação para os crimes cometidos pelos pobres. O código penal brasileiro criminaliza a pobreza", denuncia Mazina.
Sonia Drigo acredita que há uma dupla criminalização, pois "a exclusão já é uma criminalização. Isso me lembra a diferença de tratamento dado para um sem-teto e para aquele que mora numa mansão. Vamos penalizar aquele que não tem endereço, nem carteira assinada. Então, vamos bater nele, torturá-lo porque não teve condições de estudar e trabalhar". O caso da ex-empregada doméstica Maria Aparecida não deixa dúvidas a respeito de como isso acontece na prática. Na casa de sua irmã, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, a moça pouco fala. Mantém-se de cabeça baixa, cabelos longos e negros escondendo parte de seu rosto. Às vezes, esboça um sorriso ingênuo. Sua expressão é de uma menina.
A alegação que foi dada à família de Maria Aparecida para a perda da visão foi de que a jovem havia batido com o rosto no trinco de uma porta. "Mas isso é mentira, não tinha porta com trinco nenhum lá", afirma Gislaine. Quando a moça foi transferida da cadeia para o manicômio em Franco da Rocha, fizeram um exame de corpo de delito, que atestou lesões corporais leves. "Ela perdeu um órgão vital, não a socorreram. Gostaria de saber o que seria a lesão corporal grave, entregá-la num caixão para a família?", questiona Gislaine, indignada.
(...)
A "sagrada" defesa da propriedade privada acaba sendo utilizada como argumento para criminalizar movimentos sociais, como no caso das organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). "Na medida em que esses movimentos possam a reivindicar uma redistribuição de riquezas, há sua criminalização. Se tiverem apresentando um reclamo como o da proteção do meio ambiente, não há necessidade de criminalizá-lo. Mas se eles questionam a estrutura econômica da sociedade, há uma propensão à sua criminalização".
(...)
Uma das mulheres que Sonia defende também se chama Maria Aparecida, e foi presa em flagrante por tentativa de furto de seis desodorantes de uma loja em São Paulo. Condenada a 14 meses, sua pena está próxima do fim. A moça está na Penitenciária Feminina de Santana, a mesma onde Eliana Tranchesi esteve presa. A diferença é que a última teve habeas corpus concedido, enquanto a primeira não. Uma, era acusada de sonegar 1 bilhão em impostos. A outra, tentou subtrair objetos que não chegavam a totalizar 30 reais. "

14 junho 2009

Bertolt Brecht

I

Eu vivo em tempos sombrios.
Uma linguagem sem malícia é sinal de estupidez,
uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ainda ri é porque ainda não
recebeu a terrível notícia.

Que tempos são esses, quando
falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?

Aquele que cruza tranqüilamente a rua
já está então inacessível aos amigos
que se encontram necessitados?

É verdade: eu ainda ganho o bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso.

Nada do que eu faço
Dá-me o direito de comer quando eu tenho fome.
Por acaso estou sendo poupado.
(Se a minha sorte me deixa estou perdido!)

Dizem-me: come e bebe!
Fica feliz por teres o que tens!
Mas como é que posso comer e beber,
se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome?
se o copo de água que eu bebo, faz falta aquem tem sede?

Mas apesar disso, eu continuo comendo e bebendo.
Eu queria ser um sábio.
Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria:
Manter-se afastado dos problemas do mundo
e sem medo passar o tempo que se tem para
viver na terra;

Seguir seu caminho sem violência,
pagar o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, mas esquecê-los.
Sabedoria é isso!
Mas eu não consigo agir assim.
É verdade, eu vivo em tempos sombrios!


II

Eu vim para a cidade no tempo da desordem,
quando a fome reinava.
Eu vim para o convívio dos homens no tempo
da revolta
e me revoltei ao lado deles.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.
Eu comi o meu pão no meio das batalhas,
deitei-me entre os assassinos para dormir,
Fiz amor sem muita atenção
e não tive paciência com a natureza.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.


III

Vocês, que vão emergir das ondas
em que nós perecemos, pensem,
quando falarem das nossas fraquezas,
nos tempos sombrios
de que vocês tiveram a sorte de escapar.
Nós existíamos através da luta de classes,
mudando mais seguidamente de países que desapatos, desesperados!
quando só havia injustiça e não havia revolta.

Nós sabemos:o ódio contra a baixeza
também endurece os rostos!
A cólera contra a injustiça
faz a voz ficar rouca!
Infelizmente, nós,
que queríamos preparar o caminho para
a amizade,
não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.
Mas vocês, quando chegar o tempo
em que o homem seja amigo do homem,
pensem em nós
com um pouco de compreensão.

07 junho 2009

Kassandra in process - o desassombro da utopia

Kassandra - Tu não estás desesperado, agora?
Enéias - Agora estou contigo e me sinto feliz.
Kassandra - É uma grande felicidade essa.
Enéias - É uma grande felicidade. Tu não pensas como eu?
Kassandra - Penso como tu. Mas por que tu estás tão triste? Há dias os teus olhos cintilavam. Parecia que caminhavas para uma grande festa. Hoje...
Enéias - Hoje eu sei o que eu não sabia. Tu tinhas razão, não era assim, tão simples. Eu pensava que matar era fácil. Que a idéia bastava e a coragem. Mas, agora, eu sei que eu não sou tão grande quanto eu pensava ser e eu sei, também, que não pode existir felicidade no ódio. Todo esse mal. Todo esse mal em mim e nos outros. Guerra, covardia, injustiça. É preciso, é preciso que eu mate. E eu irei até o fim. Mais longe do que o ódio.
Kassandra - Mais longe que o ódio não há nada.
Enéias - Há o amor.
Kassandra - O amor não é o que é preciso.
Enéias - Kassandra, como é que tu podes dizer isso? Tu, cujos sentimentos eu conheço tão bem.
Kassandra - Há demasiado sangue. Há demasiada violência. Os que amam verdadeiramente a justiça não tem direito ao amor. Estão erguidos como eu. Com a cabeça levantada, os olhos fixos. O que faria o amor nessas almas orgulhosas? O amor, Enéias, baixa docemente as cabeças. Mas conosco não é possível. Temos um pescoço demasiado rígido.
Enéias - E nós não amamos, então, o nosso povo?
Kassandra corre na direção de Enéias e, pelas costas, puxa-lhe, violentamente, os cabelos trançados.
Kassandra - Amamos o nosso povo com um vasto amor sem apoio. Vivemos longe dele, trancados nesse lugar, perdidos com os nossos pensamentos. Mas e o povo? Nos ama o povo? Ele sabe, ao menos, que o amamos? O povo cala-se Enéias, e que silêncio!
Enéias ergue Kassandra em seus braços.
Enéias - É isso o amor. Dar tudo, sacrificar tudo sem esperança de recompensa.
Kassandra - Talvez. É o amor absoluto. A alegria pura e solitária. É o amor que, na verdade, me queima. A certas horas, no entanto, eu pergunto a mim mesma se o amor não é outra coisa. Se ele pode deixar de ser um monólogo e se, por vezes, há recompensa. Imagina isso. Vês? O sol brilha, as cabeças abaixam-se docemente, o coração afasta-se do seu orgulho, os braços se abrem.
Enéias vai, aos poucos, deixando-a de costas sobre o chão.
Kassandra - Se pudessemos esquecer por uma hora que fosse o atroz mistério do mundo. Se pudéssemos, enfim, abandonar-nos, Enéias. Tu concebes uma só hora de egoísmo?
Ele puxa-a pelas mãos e as pernas de Kassandra enlaçam sua cintura.
Enéias - Isso se chama ternura.
Kassandra - Adivinhas tudo, meu amor. Isso se chama ternura. Mas tu conheces verdadeiramente a ternura, Enéias? Amas a justiça com ternura? Amas teu povo com abandono e com toda essa doçura ou, ao contrário, com o fogo da vingança e da revolta? Compreendes, então? E a mim, tu me amas com ternura?
Enéias - Nunca ninguém te amará como eu te amo.
Kassandra - Eu sei, mas não será melhor amar como toda a gente?
Enéias - Eu não sou toda a gente. Eu te amo como eu sou.
Kassandra - Me amas mais do que a justiça?
Enéias - Eu não separo a ti e à justiça.
Kassandra desce da cintura de Enéias.
Kassandra - Me amas na solidão com ternura, com egoísmo. Me amarias se eu não fosse justa?
Enéias - Se tu não fosses justa e se eu pudesse te amar, não seria, então, a ti que eu amaria.
Kassandra - Recordo do tempo em que eu era menina. Sabia rir então. Era bonita. Passava horas a passear e a sonhar. Tu gostarias de mim assim, leve e despreocupada?
Kassandra rodopia, segurando as pontas do vestido, tal qual uma criança.
Enéias - Eu morro de desejo de responder que sim.
Kassandra - Diz, então, que sim. Se assim pensas e se é verdade o que pensas, diz que sim. Apesar da guerra, apesar dos que lutam até a morte, apesar da fome.
Enéias - Pára, Kassandra.
Kassandra - Precisamos deixar falar por uma vez os nossos sentimentos. Eu espero que tu me chames a mim, Kassandra, e que me chames por sobre esse mundo envenenado de injustiça.
Enéias - Pára, Kassandra.
Enéias atira Kassandra, brutalmente, ao chão.
Enéias - Os meus sentimentos só falam de ti, mas daqui a pouco minha mão não pode tremer.
Ele deixa-se cair sobre ela, a cabeça encostada em seu ventre.
Kassandra - Daqui a pouco. Eu já tinha me esquecido. Me perdoa, meu amor.
Desvencilhando-se ternamente, Kassandra fala.
Kassandra - Eu também não poderia dizê-lo. Eu te amo com o mesmo amor, um amor um pouco rígido, na guerra e nas prisões.
Ela senta-se, olhando o horizonte.
Kassandra - O verão, Enéias. Tu te lembras do verão?
Enéias senta-se ao seu lado.
Kassandra - Mas o inverno para nós é eterno. Nós não somos desse mundo. Nós somos os justos. Há um calor que não é para nós.


Diálogo extraído de "Os justos" de Albert Camus, cena de Kassandra in process.

05 junho 2009

""
(silêncio)
— Quer dizer que o que está no céu não existe?
— Não, não é isso. O que eu quero dizer é que aquela cor lá você não vai encontrar numa lata para pintar uma parede.
— Janela.
— O quê?
— É janela que eu quero pintar, não parede. E agora nem adianta mais, já mudou tudo. Cor de céu é coisa que muda depressa demais. Foi ficando tão escuro, você reparou? Quase tudo azul, depois preto. O preto vem vindo devagar do outro lado de onde fica o Japão, toda noite.
(silêncio)
— Está anoitecendo. Vamos embora.
— Não quero ir embora. Eu vou dormir aqui.""


amanhã não sei
não sabemos

03 junho 2009

Riqueza e poder.

Na última eleição de 2006, a candidata a governadora Yeda Crusius e oito candidatos a deputados de seu partido, receberam juntos, como doações de campanha, um montante de R$ 494.859,50, quase meio milhão de reais, das empresas Aracruz e Votorantim Celulose e Papel. Torna-se evidente, a partir disto, a responsabilidade destes políticos com as empresas patrocinadoras de suas campanhas na defesa de seus interesses comerciais no Estado, e ainda, a relação entre poder econômico e o poder político na articulação das políticas ambientais no estado do Rio Grande do Sul.
Apesar de saberem dos grandes impactos ambientais e sociais que a monocultura e as indústrias de celulose causam, e ainda da manipulação da informação, por parte das empresas, que chega até o povo, os políticos promovem a implementação destas aqui. Sabemos que estas indústrias geram desigualdade social, tendo em vista que prejudicam os pequenos agricultores de terras vizinhas às plantações de eucalipto, ainda, os poucos empregos gerados têm baixa remuneração e as atividades são grande risco físico para os trabalhadores, entre outras incoerências.
É uma vergonha que técnicos competentes tenham sido substituídos por desconhecedores dos assuntos ambientais, técnicos antigos tenham sido afastados de seus cargos, sendo substituídos por CCs sem experiência e qualificação, estes só estão lá para servir de massa de manobra para o governo do estado e consequentemente das indústrias de eucalipto.
Há a necessidade de nos questionarmos sobre o que significa o desenvolvimento. Aparentemente, o desenvolvimento, para o governo atual, é imediatista, e em seu nome, as políticas ambientais sérias são ignoradas. Não levam em conta a destruição do bioma pampa e de sua imensa diversidade e nem a questão de que a produção de papel é poluente e deve ser diminuída. Além disso, no Brasil o consumo de papel é de 40 quilos por habitante enquanto nos Estados Unidos o consumo é de 300 quilos: então, as indústrias utilizam a nossa terra mais fértil, a nossa mão de obra barata, os incentivos fiscais e as manobras de políticos; para tornarem nosso solo infértil e inutulizável por nosso povo, desalojarem os nossos índios e pequenos agricultores acamando com suas culturas, explorarem os cidadãos trabalhadores, esgotarem a nossa àgua a ponto de ter que desviar os nossos rios para fazer hidrelétricas que supram o consumo dos parques industriais eliminando o habitat de diversas espécies de plantas e de animais, poluírem nosso ar; tudo isto para vender o produto aos grandes consumidores no exterior? Sim, 98% do produto extraído das plantações são exportados. Eles exploram o nosso país e a nossa diversidade e nós nem, ao menos, usufruiremos destes produtos? E eu nem quero! O Brasil continua sendo colônia dos países do hemisfério norte, é o quintal do “primeiro mundo”. O que será que passa na cabeça desses políticos? Talvez, pensem em enriquecer, já que o Brasil é um país emergente e, quando chegarmos a ter condições de concorrer economicamente com a China, daí sim distribuiremos a renda. Não seremos ingênuos de acreditar que os políticos pensarão um dia em distribuir renda, sabemos que não. E mesmo que pensassem, a cada ano, estamos perdendo mais de 5% do que a terra consegue repor, estamos num processo de esgotamento, daqui a uns 10 anos vamos precisar de 2 planetas Terra para suprir em recursos naturais tudo que estamos utilizando agora com este consumo exacerbado.

Descaso do governo Yeda com as políticas ambientais.

Início de tudo:

No governo de Germano Rigoto, a Secretaria do Meio Ambiente (SEMA) , responsável pelas políticas ambientais do RS, através de um grupo de trabalho composto por especialistas da área ambiental, elaborou um Zoneamento Ambiental para Atividade de Silvicultura (ZAS) objetivando o controle da plantação de eucalipto pelas empresas papeleiras no estado. Este foi finalizado na virada de governo de 2006 para 2007; foi aprovado pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA) com a participação de técnicos da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM), Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (FZB-RS), Departamento de Florestas e áreas Protegidas (DEFAP) e uma empresa de consultoria.

Após a posse de Yeda Crusius, no dia 1° de março de 2007, executivos da Stora Enso tiveram uma audiência no Palácio Piratini com a governadora, repetindo roteiro feito pelas outras grandes empresas do setor. Apresentaram seus planos de negócios e reclamaram das restrições impostas pelo plano de zoneamento ambiental para o plantio de silvicultura, elaborado no final de 2006, reclamaram dos entraves ambientais para a execução de seus projetos de expansão de plantio de eucalipto, a governadora afirmou não querer ser responsável pela saída de uma empresa de tamanho porte e que correspondia a grandes investimentos no estado e teria de tomar providências.

Yeda precisava substituir os funcionários responsáveis pelos órgãos ambientais no Estado já que estavam demorando a “resolver o problema”, então, demitiu a secretária do Meio Ambiente, Vera Callegaro, que era bióloga e sua amiga de tempos. Vera Callegaro não discordava da posição desenvolvimentista da governadora, mas, por sua trajetória vinculada ao Meio Ambiente, não descuidava-se em manter o processo legal de conceder as licenças levando em conta todos os passos passando pelas respectivas instâncias, acompanhando os procedimentos técnicos que preservavam o zoneamento amparado por lei. Demitiu também o presidente da FEPAM, Irineu Schneider que é de seu partido, ele fora apontado como responsável pela adoção do zoneamento que não fora concluído “a tempo” e ainda era considerado “restritivo demais” demais pelas empresas. Segundo Paulo Brack, professor da UFRGS , as ONGs ambientalistas fizeram contato com Brasília pedindo a ajuda do IBAMA quanto a saída de Vera Callegaro, mas o Governo Federal orientou que o IBAMA não se envolvesse na questão.

No dia 14 de maio, a governadora anunciou os substitutos. Para a secretaria do Meio Ambiente, foi nomeado o procurador de Justiça Otaviano Brenner, cuja indicação causou uma crise interna no Ministério Público Estadual por haver quem achasse que a participação de um membro do ministério público pudesse influenciar nas decisões do órgão, Brenner defendeu-se: “Buscarei o equilíbrio entre a preservação ambiental e o desenvolvimento econômico que viabiliza a sobrevivência da sociedade. Espero que o trabalho seja facilitado pela colaboração dos servidores”. Para a presidência da FEPAM, foi nomeada a ex-diretora-geral da Secretaria de Segurança Pública, Ana Pellini, que tomou posse com as palavras: “o que me encanta e motiva no governo Yeda é a preocupação com o aprimoramento da gestão nos órgãos públicos estaduais”.

Como primeiras providências quanto à demora da emissão das licenças, foi criado logo de início, um Grupo de Trabalho (GT) para revisar o zoneamento já votado anteriormente. Foram chamados para compor esse grupo representantes da FARSUL (Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul), da FAMURS (Federação da Associação dos Municípios do RS), da FIERGS (Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul), da AGEFLOR (Associação Gaúcha de Empresas Florestais), do SINDMADEIRA (Sindicato da Madeira) e de setores do próprio governo e do legislativo; ficaram de fora desse GT as ONGs ambientalistas, os setores da academia, e foram afastados diversos técnicos responsáveis pelo zoneamento anterior. Ana Pellini foi acusada por diversas irregularidades, ela estaria ameaçando os técnicos da câmara técnica do CONSEMA que não emitissem pareceres a favor das empresas produtoras de celulose no Estado, e afastando os técnicos mais experientes da SEMA, mais de 10 técnicos que estavam envolvidos com o zoneamento, foram retirados do trabalho. Ela também contratou, para este novo zoneamento técnicos da EMATER, que é uma empresa privada.

No início de novembro de 2007 o governo do Estado foi acionado pelo Ministério Público Federal e por um conjunto de ações das ONGs, para que cumprisse as leis, e obtiveram uma liminar que impedia a FEPAM de emitir qualquer tipo de licenciamento ambiental para empreendimentos ligados à silvicultura, o IBAMA passaria a ser responsável por isto. Mas a decisão foi suspensa no final do mês, porque o IBAMA não poderia ser responsabilizado já que “A silvicultura, no RS, sempre foi tratada no âmbito fiscalizatório estadual, inclusive manifestando-se o Ibama, expressamente, pela sua incompetência para licenciar silvicultura”.

A partir daí o zoneamento teve de ser encaminhado novamente para as Câmaras Técnicas do CONSEMA, mas sem data certa para o cumprimento, a direção da FEPAM, então, deu início as discussões do Zoneamento da Silvicultura, as Câmaras Técnicas de Biodiversidade e Florestas, de assuntos Jurídicos e de Agroindústria e Agropecuária tiveram de levar a discussão a fim de colocá-lo em vigor. Muitos parâmetros incluídos inicialmente no ZAS foram questionados, alguns retirados e outros aperfeiçoados, de forma consensual, sendo que os técnicos da FEPAM e da FZB e os ambientalistas, representantes na Câmara Técnica, abriram mão de muitas questões. Houve reunião da Câmara Técnica de Biodiversidade e Política Florestal, do dia 18 de março de 2008, a Presidente da FEPAM, Ana Pellini, que nunca havia participado desta Câmara Técnica, e setores representantes das empresas, alegando estudos insuficientes para a finalização do ZAS, retiraram as principais restrições acordadas anteriormente. Houve votação, quebrando os consensos até então implementados. O resultado foi a modificação de diversos itens, a extinção dos índices de vulnerabilidade e de restrição para as unidades de paisagem e retirada dos limites quanto ao tamanho máximo dos maciços de plantios arbóreos homogêneos e de seus espaçamentos. O argumento da presidente da FEPAM e do grupo gestorinterventor da SEMA era de que qualquer número limitador era prematuro.

O dia 9 de abril de 2008:

Para a aprovação definitiva, o secretário do Meio Ambiente convocou uma reunião extraordinária do CONSEMA a menos de 3 dias de sua realização, esta seria realizada no dia 4 de abril de 2008. Neste dia seriam lidos os relatórios das Câmaras Técnicas, nesta reunião o representante da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), Flávio Lewgoy, pediu vistas aos documentos e tempo suficiente para dar seu parecer, conforme garantia a Resolução n. 64/2004 do CONSEMA, que disponibilizaria pelo menos 15 dias para a elaboração de seu parecer. O presidente do Conselho concedeu somente 3 dias para a análise completa dos documentos que somavam mais de mil páginas e a elaboração do parecer. Assim, no dia 9 de abril a AGAPAN entrou com um Mandado de Segurança na 5ª Vara da Fazenda Pública da Capital, suspendendo a votação no CONSEMA do Zoneamento Ambiental da Silvicultura que aconteceria naquela tarde. A magistrada da 5ª Vara da Fazenda Pública, a juíza Kétlin Carla Pasa Casagrande entendeu que “a entidade demonstrou a impossibilidade de manifestação sobre a Proposta de zoneamento e Pareceres das Câmaras Técnicas do CONSEMA no prazo concedido, que é mínimo, ante a complexidade e efetiva importância da questão a ser analisada”.

Carlos Brenner de Moraes tentou justificar a urgência do tema e iria tentar derrubar a liminar, logo depois saiu da reunião, deixando a responsabilidade de sua coordenação ao secretário adjunto, Francisco Simões Pires. A liminar foi derrubada na noite do dia 9 de abril, após a saída em bloco das ONGs da reunião. A suspensão da liminar que impedia a votação final do ZAS foi dada pelo desembargador Arminio José Abreu Lima da Rosa, Presidente do TJRS (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul), no início da noite. O argumento maior a favor da urgência da votação foi o de evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, já que foram apresentados supostos prejuízos imediatos para o Estado, com o possível corte de investimento de mais de 6 bilhões de reais em função da demora da “definição da matéria ambiental”, além de afirmar que a AGAPAN não poderia desconhecer o projeto que fora discutido por eles mesmos, apesar de serem documentos novos que significavam bruscas alterações ocorridas nas duas últimas semanas, tais mudanças não tinham sido discutidas antes no CONSEMA. Foi aprovado então, o zoneamento guiado por Ana Pellini e Otaviano Brenner por 19 votos na noite do dia 9 de abril, depois da saída em bloco dos representantes das ONGs.