Kassandra - Adubaste com sangue esta terra. Fartaste de corpos humanos uma indústria. Nas tuas máquinas trituradoras, tu, o cão sanguinário. A tua propriedade privada são dois pares de botas. Dizias tu, quando te perguntaram pelos teus cadáveres: "acaso os contaste?". Já não podes contá-los porque são o chão em que pisamos em direção ao teu futuro radioso. A humanidade é um triste material. Humanamente material. Formigas em baixo da bota. Ontem para o teu amanhã. Vejo a chegada de uma época onde os reis bárbaros governam um mundo cheio de vícios, onde homens audaciosos e maus vivem vidas curtas, têm os cabelos brancos aos dezesseis anos e copulam com animais. Suas mulheres prostitutas fazem amor com bocas de cobiça. As vacas são secas e estéreis. Já não há mais flores e nem pureza, só ambição, corrupção, comércio. Eu não poderia amar um herói. Eu não quero assistir à tua metamorfose em monumento público. Ainda bem, Enéias, que tu nunca disseste que isso não te aconteceria ou que tu poderias me livrar de tudo isso. O que se pode fazer contra uma época que necessita de heróis? Que a dor nos faça lembrar um do outro. Por ela será que nos reconheceremos mais tarde, caso exista um mais tarde.
...
Eumelo - Kassandra, ninguém é feliz sem fazer mal aos outros. É a ordem da terra.
Kassandra - Eu não nasci para consentir nessa ordem.
Eumelo - E quem é que pede para consentires? A ordem do mundo não mudará o sabor dos teus desejos. Se queres mudá-la, abandona os teus sonhos e toma conhecimento da realidade.
Kassandra - Eu já conheço a receita. É preciso matar para suprimir a injustiça. Há séculos que isso dura. Há séculos que os senhores da tua raça apodrecem a chaga do mundo sob o pretexto de curá-la. E, no entanto, continuam a vangloriar-se de sua receita, uma vez que ninguém lhes riu na cara.
Eumelo - Basta olhar para os homens e verás que qualquer justiça é bastante boa para eles. Então, já sabes. Eles te deixarão sempre só. E aquela que está sozinha deve morrer.
Kassandra - Não, é uma tese falsa. Se eu estivesse só, tudo seria fácil. Mas, por bem ou por mal, eles estão comigo.
Eumelo - Belo rebanho, pena que cheira mal.
Kassandra - Eles não são puros. Eu também não sou. Além do mais, nasci entre eles. Vivo para minha cidade e para a minha época.
Eumelo - Veste os teus homens livres com o uniforme da minha polícia e verás no que eles se transformam.
Kassandra - É verdade que lhes acontece serem covardes e cruéis. É por isso que não têm mais do que tu o direito ao poder. Homem nenhum, nenhum, tem virtude o suficiente para que lhe possa ser permitido o poder absoluto. Eu só desprezo os carrascos. Faças o que fizeres, esses homens sempre serão maiores do que tu. Se lhes acontecer, de alguma vez, matar, é na loucura de um instante. Tu, não. Tu massacras segundo a lei e a lógica. Não rias de seu ar de temor. Há séculos o cometa do medo passa por cima deles. Há séculos eles morrem e seu amor é dilacerado. O maior de seus crimes terá sempre uma desculpa. Mas não encontro desculpas para o crime que, em todos os tempos, tens cometido contra eles e que, para arrematar, tiveste a idéia de codificar nessa imunda ordem que é a tua. Eu não baixarei os olhos. Agora eu entendo o que me foi imposto "tu dirás a verdade, mas ninguém acreditará em ti". Alí estava o ninguém que deveria me crer. Que não foi capaz de crer porque não acreditava em nada. Um ninguém incapaz de crer. Que, ao menos, o meu ódio sobrevivesse. Que brote do meu túmulo o ódio. E eu? Haverá um mundo, um tempo, um lugar pra mim? Ninguém a quem possa perguntar. Essa é a resposta.
Fragmentos de Kassandra In Process baseados em "Germania 3 Morte em Berlim" de Heiner Muller, em "Estado de sítio" de Albert Camus e ainda em "Medéia. Vozes." de Christa Wolf.
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