02 setembro 2010

- Meu tênis molhou.
- Ah é? O meu ainda não. Me da um beijo.
Quando desci do ônibus ela apertou. Seria bom que a chuva me lavasse disso tudo. - Isso vira câncer. Sabe? Quando te incomoda pra sempre pode virar, minha gineco que disse. Essas coisas vão acumulando. Preciso fumar. - Parei no bar e pedi um maço no balcão, não tinha. Então pedi um para o moço debaixo do toldo. Eu ia puxar um papo sobre a chuva mas ele falou antes - É a televisão. Fumante tem que se sentir culpado. Os fumódromos. As crianças. É a televisão.
Retomei a caminhada. Quando cheguei ao fim da rua me contaram:
- Ele estava aqui agora mesmo. Pagou dois mil, por ti. Sofria com a culpa pelo crime que não cometeu. Então chorou e pagou dois mil.
- Que dia. Eu torci o pé de manhã. Depois a fechadura da porta do meu quarto estragou e eu fiquei horas trancada. Desaparafusei tudo com o cortador de unha e não adiantou, tive que chamar alguém para me passar a chave de fenda pelo buraco e eu arrombei. Que fome... com chulé, vou tirar esse tênis molhado.

30 abril 2010

Por estes santos latifúndios.

Um dos atores tira os óculos e se transforma na menina. Soldado entra segurando uma menina pelo braço.

SOLDADO: Veja, Sargento, encontrei essa menina, ela estava junto com os invasores!
SARGENTO: Qual é o seu nome menina? (menina não responde) Perguntei qual o seu nome? (aperta o rosto dela entre os dedos) O gato comeu a sua língua? Quem é o líder de vocês? (silêncio) Você gosta de doces, menina? Eu tenho aqui umas balas, amarelas, verdes...pegue! De abacaxi, para o guri. De melancia, para sua tia. De maçã, para sua irmã. E a amarela, para a cadela. (fica pensativo) Está vendo, menina? Sou um péssimo poeta, não sei nem fazer versos. Tem alguém entre vocês que sabe fazer versos?
MENINA: Meu tio Miguel.
SARGENTO: Ele é o líder? Foi ele que falou para vocês invadirem essas terras? (a menina balança negativamente a cabeça) Então quem é o líder?
MENINA: Eu sei quem é o líder, Senhor.
SARGENTO: Menina obediente. Quem é então?
MENINA: A fome, a doença e a ignorância. Eles são os líderes, Senhor.
SAREGENTO: Escuta aqui, menina! Vou dizer uma vez só, sabe aquele homenzinho que te trouxe aqui? Ele é um homem muito cruel. Não deveria dizer isso, é meu companheiro! Rezem a Deus para que eu consiga acalmar ele, ele quer acabar com tudo isso na bala, mas eu não vou deixar. Sou um homem bom. Agora vá! Diga à sua gente que colaborem comigo. Só me digam quem são os líderes e acaba o assunto. Entendeu? Tome! Pegue mais doces.
MENINA: Não quero doces, Senhor. Obrigada!
SARGENTO: Então some daqui, menina! (a menina mostra a língua por trás das costas do Sargento e sai)


- Pequeno trecho do texto escolhido para o exercício cênico inspirado na peça "Por estes santos latifúndios" de Guilhermo Maldonado Pérez, premiado pela Casa das Américas de Cuba em 1975.

05 fevereiro 2010

"O homem de hoje pouco sabe das leis que regem sua vida. Suas concepções da vida social são errôneas, vagas e contraditórias, não sabe qual intervenção é necessária na máquina social para obter o efeito desejado.
A exigência de uma maneira reslista de escrever também não pode mais ser ignorada. Isso tornou-se mais ou menos evidente por si mesmo. As camadas dominantes estão usando mentiras mais abertamente, e as mentiras são cada vez maiores. Dizer a verdade parece uma tarefa cada vez mais urgente. Os sofrimentos são maiores e o número de sofredores aumentou. Comparado com o vasto sofrimento das massas, parece frívola e mesmo desprezível a preocupação com dificuldades mesquinhas.
Temos apenas um aliado na luta contra a barbárie: o povo sobre o qual ela impõe esses sofrimentos. Somente o povo oferece perspectivas. Assim, é natural que se recorra a ele e mais necessário do que nunca falar sua linguagem. É no interesse do povo, das amplas massas trabalhadoras, que a literatura deve fornecer representações verdadeiras da vida da realidade."

Bertolt Brecht - Estudos Sobre o Teatro e O Teatro Didático

04 janeiro 2010

"...a voz que não se levanta diante de uma injustiça praticada contra outrem, que não protesta contra uma violência se essa violência não o atinge diretamente, esquecido de que as violências contra a criatura humana geram, quase sempre, uma reação em cadeia que talvez não pare no nosso vizinho."

Dias Gomes

conformar-se é viver de joelhos

09 dezembro 2009

Um magrão pergunta:
- Sidi! Posso colar um cartaz e pendurar uma cerveja?
- Te liga vagabundo. Larga daqui.

Uma gostosa pergunta:
- Sidi! Posso colar um cartaz e pendurar uma cerveja?
- Claro meu amor, fica à vontade. O que eu não faço por ti heim? (Pisca e dá uma boa olhada na bunda da gostosa.)

Uma moça bonita:
- Oi! Eu posso dar uma olhadinha na festa? Quero ver se uma amiga minha tá aí dentro.
- Claro, fica à vontade gatinha.
(Ela sobe e demora muito tempo para voltar.)

Um cara negro:
- Oi! Eu posso dar uma olhada na festa? Quero ver se um amigo meu tá aí dentro.
- Vai logo magrão, mas é rápido.
(O cara demora um pouco...)
- Ô meu, te liga, aquele negão subiu lá e até agora não voltou. Te liga aqui na portaria que eu lá catá esse negão. arracá esse negão de lá. Tá demorando demais, acha que eu babaca. catá esse vagabundo. Ô negão (Referindo-se ao outro homem que está na portaria, também é negro.) é dez e traço, não dá arrego não heim. Te liga. (O homem negro que está na portaria não diz nada, olha para baixo e senta-se no banquinho enquanto o homem branco levanta e sai para "catar o negão", quando chega na porta o cara negro desce das escadas agradecendo.)
- Ó, valeu mesmo heim! mais!
(O homem branco fica imóvel na porta. Parece envergonhado. Pensa...Não diz nada.)

01 dezembro 2009

A infanticida Maria Farrar - Bertolt Brecht

Maria Farrar, nascida em abril,
sem sinais particulares,
menor de idade, orfã, raquítica,
ao que parece matou um menino
da maneira que se segue,
sentindo-se sem culpa.
Afirma que grávida de dois meses
no porão da casa de uma dona
tentou abortar com duas injeções
dolorosas, diz ela,
mas sem resultado.
E bebeu pimenta em pó
com álcool, mas o efeito
foi apenas de purgante.
Mas vós, por favor, não deveis
vos indignar.
Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Seu ventre inchara, agora a olhos vistos
e ela própria, criança, ainda crescia.
E lhe veio a tal tonteira no meio do ofício das matinas
e suou também de angústia aos pés do altar.
Mas conservou em segredo o estado em que se achava
até que as dores do parto lhe chegaram.
Então, tinha acontecido também a ela,
assim feiosa, cair em tentação.
Mas vós, por favor, não vos indigneis.
Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Naquele dia, disse, logo pela manhã,
ao lavar as escadas sentiu uma pontada
como se fossem alfinetadas na barriga.
Mas ainda consegue ocultar sua moléstia
e o dia inteirinho, estendendo paninhos,
buscava solução.
Depois lhe vem à mente que tem que dar à luz
e logo sente um aperto no coração.
Chegou em casa tarde.
Mas vós, por favor, não vos indigneis.
Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Chamaram-na enquanto ainda dormia.
Tinha caído neve e havia que varrê-la,
às onze terminou. Um dia bem comprido.
Somente à noite pode parir em paz.
E deu à luz, pelo que disse, a um filho
mas ela não era como as outras mães.
Mas vós, por favor, não vos indigneis.
Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Com as últimas forças, ela disse, prosseguindo,
dado que no seu quarto o frio era mortal,
se arrastou até a privada, e ali,
quando não mais se lembra,
pariu como pôde quase ao amanhecer.
Narra que a esta altura estava transtornadíssima,
e meio endurecida e que o garoto, o segurava a custo
pois que nevava dentro da latrina.
Entre o quarto e a privada
o menino prorrompeu em pratos
e isso a perturbou de tal maneira, ela disse,
que se pôs a socá-lo
às cegas, tanto, sem cessar,
até o fim da noite.
E de manhã o escondeu então no lavatório.
Mas vós, por favor, não deveis vos indignar,
toda criatura precisa da ajuda dos outros.
Maria Farrar, nascida em abril,
morta no cárcere de Moissen,
menina-mãe condenada,
quer mostrar a todos o quanto somos frágeis.
Vós que parís em leito confortável
e chamais bendito vosso ventre inchado,
não deveis execrar os fracos e desamparados.
Por obséquio, pois, não vos indigneis.
Toda criatura precisa da ajuda dos outros.
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Meninas e mulheres são consideradas criminosas quando tentam evitar que venham ao mundo crianças quase mortas, atiradas ao horror e à miséria. País subnutrido e analfabeto, onde as ricas pagam abortos em clínicas quase seguras. As outras são obrigadas a gestar nosso futuro doloroso. Brasil. Muitas ainda morrem com agulhas enfiadas no ventre. Ainda hoje. Ainda hoje. Quero livres: meu corpo, minha vagina, meu sexo e meu pensar.

14 novembro 2009

Não podemos viver eternamente rodeados de mortos e de morte. E se ainda restam preconceitos há que destruí-los. O "dever", digo bem, "O DEVER" do escritor, do poeta, não é encerrar-se covardemente em um texto, em um livro, em uma revista, de onde não mais se libertará, mas, pelo contrário, sair para fora e sacudir para atacar o espírito público, se não, para que serve? Para que nasceu?

Antonin Artaud - Manifesto Surrealista em Defesa da Libertação do Espírito.