25 junho 2009

A produção intelectual está baixa por aqui,
porém,
a reprodução cultural vai indo bem!
Encontrei um sebo cheio de Drummond
vazio de Cecília Meireles;
trouxe "Poesia Errante"
pra fazer par com o Alento e
também um incenso de Alecrim.
Meu Quintana continua no bolso,
acompanhando o mineirinho,
Caio num PDF e quero muito mais de Brecht.


Amanhã Maratona Literária

24 junho 2009

ninguém é superior a ninguém

aos intelectuais -
"Eu sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso, eu amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo, que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade."

aos revolucionários -
"É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática."
"Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela coerentes."

aos educadores -
"Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda".

delícia de viver -
"Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Está é a diferença profunda entre o ser condicionado e o ser determinado."

à toda gente -
"Amar é um ato de coragem."


Paulo Freire - "Não se pode falar em educação sem amor", em revolução também não.

23 junho 2009

Kassandra - Adubaste com sangue esta terra. Fartaste de corpos humanos uma indústria. Nas tuas máquinas trituradoras, tu, o cão sanguinário. A tua propriedade privada são dois pares de botas. Dizias tu, quando te perguntaram pelos teus cadáveres: "acaso os contaste?". Já não podes contá-los porque são o chão em que pisamos em direção ao teu futuro radioso. A humanidade é um triste material. Humanamente material. Formigas em baixo da bota. Ontem para o teu amanhã. Vejo a chegada de uma época onde os reis bárbaros governam um mundo cheio de vícios, onde homens audaciosos e maus vivem vidas curtas, têm os cabelos brancos aos dezesseis anos e copulam com animais. Suas mulheres prostitutas fazem amor com bocas de cobiça. As vacas são secas e estéreis. Já não há mais flores e nem pureza, só ambição, corrupção, comércio. Eu não poderia amar um herói. Eu não quero assistir à tua metamorfose em monumento público. Ainda bem, Enéias, que tu nunca disseste que isso não te aconteceria ou que tu poderias me livrar de tudo isso. O que se pode fazer contra uma época que necessita de heróis? Que a dor nos faça lembrar um do outro. Por ela será que nos reconheceremos mais tarde, caso exista um mais tarde.
...
Eumelo - Kassandra, ninguém é feliz sem fazer mal aos outros. É a ordem da terra.
Kassandra - Eu não nasci para consentir nessa ordem.
Eumelo - E quem é que pede para consentires? A ordem do mundo não mudará o sabor dos teus desejos. Se queres mudá-la, abandona os teus sonhos e toma conhecimento da realidade.
Kassandra - Eu já conheço a receita. É preciso matar para suprimir a injustiça. Há séculos que isso dura. Há séculos que os senhores da tua raça apodrecem a chaga do mundo sob o pretexto de curá-la. E, no entanto, continuam a vangloriar-se de sua receita, uma vez que ninguém lhes riu na cara.
Eumelo - Basta olhar para os homens e verás que qualquer justiça é bastante boa para eles. Então, já sabes. Eles te deixarão sempre só. E aquela que está sozinha deve morrer.
Kassandra - Não, é uma tese falsa. Se eu estivesse só, tudo seria fácil. Mas, por bem ou por mal, eles estão comigo.
Eumelo - Belo rebanho, pena que cheira mal.
Kassandra - Eles não são puros. Eu também não sou. Além do mais, nasci entre eles. Vivo para minha cidade e para a minha época.
Eumelo - Veste os teus homens livres com o uniforme da minha polícia e verás no que eles se transformam.
Kassandra - É verdade que lhes acontece serem covardes e cruéis. É por isso que não têm mais do que tu o direito ao poder. Homem nenhum, nenhum, tem virtude o suficiente para que lhe possa ser permitido o poder absoluto. Eu só desprezo os carrascos. Faças o que fizeres, esses homens sempre serão maiores do que tu. Se lhes acontecer, de alguma vez, matar, é na loucura de um instante. Tu, não. Tu massacras segundo a lei e a lógica. Não rias de seu ar de temor. Há séculos o cometa do medo passa por cima deles. Há séculos eles morrem e seu amor é dilacerado. O maior de seus crimes terá sempre uma desculpa. Mas não encontro desculpas para o crime que, em todos os tempos, tens cometido contra eles e que, para arrematar, tiveste a idéia de codificar nessa imunda ordem que é a tua. Eu não baixarei os olhos. Agora eu entendo o que me foi imposto "tu dirás a verdade, mas ninguém acreditará em ti". Alí estava o ninguém que deveria me crer. Que não foi capaz de crer porque não acreditava em nada. Um ninguém incapaz de crer. Que, ao menos, o meu ódio sobrevivesse. Que brote do meu túmulo o ódio. E eu? Haverá um mundo, um tempo, um lugar pra mim? Ninguém a quem possa perguntar. Essa é a resposta.

Fragmentos de Kassandra In Process baseados em "Germania 3 Morte em Berlim" de Heiner Muller, em "Estado de sítio" de Albert Camus e ainda em "Medéia. Vozes." de Christa Wolf.

20 junho 2009

Cena da peça "Patética" de João Ribeiro Chaves Neto

Glauco - Joana, por que o circo está fechando?
Joana - Dívida. Dinheiro curto. Os donos do terreno tão tirando ele da gente. Porque perdemos a demanda. É, teve uma demanda!...Quiseram subir o preço. Só vendo. O circo não podia. O que pagava já era muito. E eles sempre pediam mais. A gente tentou. Tentou de tudo. A gente foi falar com o Prefeito. Que não recebeu. E com o Secretário da Cultura. Que recebeu pra dizer que o circo não tinha nível. Pior ainda: mandou pôr no jornal que a gente tinha era que morrer mesmo.
Glauco - E você, o que pensa? Tem nível?
Joana - Tem. Tem sim!...Quanta coisa bonita se vê aqui. Coisa boa de se pensar e discutir. Parece só um bate-papo com quem tá sentado aí na frente. Mas eles aprendem e gostam que só vendo. A gente ensina...
Glauco - Ensina o que?
Joana - Que a vida...Que não se pode viver só pra comer, dormir. O circo ensina o outro lado.
Glauco - Que outro lado é esse?
Joana - O lado das coisas que não se diz. Porque não é preciso dizer não.
Glauco - Você sabe quem foi Shakespeare?
Joana - Quem foi sei não. Mas sei que escreveu o Otelo e a Megera, duas peças que fiz aqui. Sucesso todas duas.
Glauco - Vocês não tem receio de levar esses autores? Vocês pagam direitos autorais? Vocês não pensam que podem protestar contra o que estão fazendo?
Joana - Por que haviam de achar ruim? A gente faz direito. Como manda no papel!...As palavras que não se entende, Bolota explica. E, se for muito difícil, muda. A peça sai bem feita. Sai sim!...Então por que é que não iam gostar?
Glauco - Deixa pra lá, Joana. Eu quero saber agora se o público, esse que vem aqui, não acha o trabalho de vocês uma chatice.
Joana - Não! Acha não, senhor! Bate palma e volta sempre. Nós nunca acendemos a luz com menos de cinquenta pessoas. E antigamente, quando o circo era itinerante, vinha muito escritor trazer peça pra gente. Querendo que se levasse.
Glauco - E vocês levavam?
Joana - Se o Bolota achava bom, levava! Foi assim com a peça do Seu Zé Vicente. Aquela que morria todo mundo no fim.

17 junho 2009

"a propriedade é o grande valor do direito penal. Basta ver que a pena do furto é maior do que a pena de tortura"

Por que a Justiça não pune os ricos.
Por Tatiana Merlino
"Maria Aparecida evita olhar para sua imagem refletida no espelho. Faz quatro anos que a jovem paulistana saiu da cadeia, mas, nem que quisesse, conseguiria esquecer o que sofreu durante um ano de detenção. Seu reflexo remonta ao ocorrido no Cadeião de Pinheiros, onde esteve presa após tentar furtar um xampu e um condicionador que, juntos, valiam 24 reais.
Lá, Maria Aparecida de Matos pagou por seu “crime”: ficou cega do olho direito. Portadora de “retardo mental moderado”, a ex-empregada doméstica foi detida em flagrante em abril de 2004, quando tinha 23 anos. Na delegacia, não deixaram que telefonasse para a família. Foi mandada diretamente para a prisão, onde passou a dividir uma cela com outras 25 mulheres.
Em surto, a jovem não dormia durante a noite, comia o que encontrava pelo chão, urinava na roupa. Passado algum tempo, para tentar encerrar um tumulto, a carceragem lançou uma bomba de gás lacrimogêneo na área das detentas. Uma delas resolveu jogar água no rosto de Maria Aparecida, e a mistura do gás com o líquido fez com que seu olho fosse sendo queimado pouco a pouco. "Parecia que tinha um bicho me comendo lá dentro", conta.
A pedido das colegas de pavilhão, que não aguentavam mais os gritos de dor e os barulhos provocados pela moça, ela foi transferida para o "seguro", onde ficam as presas ameaçadas de morte. Maria Aparecida passou a apanhar dia e noite. "Eu chorava muito de dor no olho, e elas começaram a me bater com cabo de vassoura", relembra, emocionada. Somente quando compareceu à audiência do seu caso, sete meses depois de ter sido detida, sua transferência para a Casa de Custódia de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, foi autorizada. Lá, diagnosticaram que havia perdido a visão do olho direito.
Foi nessa época que sua irmã Gisleine procurou a Pastoral Carcerária, que a encaminhou para a advogada Sonia Regina Arrojo e Drigo, vice-presidente do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Sonia entrou com um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, que foi negado. Apelou, então, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, em maio de 2005, concedeu liberdade provisória à jovem, 13 meses depois de ter sido presa por causa de 24 reais. A advogada também entrou com um pedido de extinção da ação, baseando-se no “princípio da insignificância”, aplicado quando o valor do patrimônio furtado é tão baixo que não vale a pena a justiça dar continuidade ao caso. No entanto, até hoje, o processo não foi julgado, e Maria Aparecida continua em liberdade provisória. A situação indigna Gisleine. "É um descaso muito grande. Já era para esse julgamento ter acontecido. Minha irmã pagou muito caro por esse xampu que não chegou a utilizar", critica. "Tem gente que não precisa estar na cadeia. Existem penas alternativas e o caso dela não seria de prisão, mas sim de internação, já que desde os 14 anos ela toma medicação controlada", afirma.
Justiça seletiva
O mesmo recurso jurídico – o habeas corpus – pedido pela advogada Sonia Drigo para que Maria Aparecida respondesse ao processo em liberdade foi solicitado e concedido, em 24 horas, a outra mulher. Mas um “pouco” mais rica: a empresária Eliana Tranchesi, proprietária da butique de luxo Daslu, em São Paulo, condenada em primeira instância a uma pena de 94,5 anos de prisão. Três pelo crime de formação de quadrilha, 42 por descaminho consumado (importação fraudulenta de um produto lícito), 13,5 anos por descaminho tentado e mais 36 por falsidade ideológica.
Somando impostos, multas e juros, a Justiça diz que a Daslu deve aos cofres públicos 1 bilhão de reais. Os representantes da empresa contestam esse valor, mas afirmam que já começaram a pagar as dívidas. A sentença inclui ainda o irmão de Eliana, Antonio Carlos Piva de Albuquerque, diretor financeiro da Daslu na época dos fatos, e Celso de Lima, dono da maior das importadoras envolvidas com as fraudes, a Multimport.
(...)
De acordo com juristas e analistas ouvidos pela reportagem da Caros Amigos, a diferença de tratamento dispensado a casos como o de Maria Aparecida e Eliana Tranchesi acontece porque, embora na teoria a lei seja a mesma para todos, na prática, ela funciona de forma bem distinta para os representantes da elite e para os pobres.
(...)
Em relação a casos penais, isso também ocorre, "como quando uma pessoa com muitos recursos financeiros é acusada – Paulo Maluf, por exemplo. Nesse caso, ela é capaz de bloquear o andamento do processo até que a pena esteja prescrita. A agilidade em decidir a prisão ou soltura de uma pessoa também varia, de acordo com sua classe social", aponta Koerner. A diferença é que "um acusado de classe menos favorecida não será capaz de usar as oportunidades permitidas pelo processo".
(...)
Mazina sustenta que a justiça brasileira é constituída para não ser popular. Em sua avaliação, desde a formação da legislação, há uma preocupação muito maior com a preservação patrimonial em detrimento da proteção da integridade física. Isso contribui, portanto, para a criminalização das camadas mais baixas da população, mais propensas, por sua condição social, a cometerem delitos contra o patrimônio. "Há um acirramento da legislação para os crimes cometidos pelos pobres. O código penal brasileiro criminaliza a pobreza", denuncia Mazina.
Sonia Drigo acredita que há uma dupla criminalização, pois "a exclusão já é uma criminalização. Isso me lembra a diferença de tratamento dado para um sem-teto e para aquele que mora numa mansão. Vamos penalizar aquele que não tem endereço, nem carteira assinada. Então, vamos bater nele, torturá-lo porque não teve condições de estudar e trabalhar". O caso da ex-empregada doméstica Maria Aparecida não deixa dúvidas a respeito de como isso acontece na prática. Na casa de sua irmã, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, a moça pouco fala. Mantém-se de cabeça baixa, cabelos longos e negros escondendo parte de seu rosto. Às vezes, esboça um sorriso ingênuo. Sua expressão é de uma menina.
A alegação que foi dada à família de Maria Aparecida para a perda da visão foi de que a jovem havia batido com o rosto no trinco de uma porta. "Mas isso é mentira, não tinha porta com trinco nenhum lá", afirma Gislaine. Quando a moça foi transferida da cadeia para o manicômio em Franco da Rocha, fizeram um exame de corpo de delito, que atestou lesões corporais leves. "Ela perdeu um órgão vital, não a socorreram. Gostaria de saber o que seria a lesão corporal grave, entregá-la num caixão para a família?", questiona Gislaine, indignada.
(...)
A "sagrada" defesa da propriedade privada acaba sendo utilizada como argumento para criminalizar movimentos sociais, como no caso das organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). "Na medida em que esses movimentos possam a reivindicar uma redistribuição de riquezas, há sua criminalização. Se tiverem apresentando um reclamo como o da proteção do meio ambiente, não há necessidade de criminalizá-lo. Mas se eles questionam a estrutura econômica da sociedade, há uma propensão à sua criminalização".
(...)
Uma das mulheres que Sonia defende também se chama Maria Aparecida, e foi presa em flagrante por tentativa de furto de seis desodorantes de uma loja em São Paulo. Condenada a 14 meses, sua pena está próxima do fim. A moça está na Penitenciária Feminina de Santana, a mesma onde Eliana Tranchesi esteve presa. A diferença é que a última teve habeas corpus concedido, enquanto a primeira não. Uma, era acusada de sonegar 1 bilhão em impostos. A outra, tentou subtrair objetos que não chegavam a totalizar 30 reais. "

14 junho 2009

Bertolt Brecht

I

Eu vivo em tempos sombrios.
Uma linguagem sem malícia é sinal de estupidez,
uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ainda ri é porque ainda não
recebeu a terrível notícia.

Que tempos são esses, quando
falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?

Aquele que cruza tranqüilamente a rua
já está então inacessível aos amigos
que se encontram necessitados?

É verdade: eu ainda ganho o bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso.

Nada do que eu faço
Dá-me o direito de comer quando eu tenho fome.
Por acaso estou sendo poupado.
(Se a minha sorte me deixa estou perdido!)

Dizem-me: come e bebe!
Fica feliz por teres o que tens!
Mas como é que posso comer e beber,
se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome?
se o copo de água que eu bebo, faz falta aquem tem sede?

Mas apesar disso, eu continuo comendo e bebendo.
Eu queria ser um sábio.
Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria:
Manter-se afastado dos problemas do mundo
e sem medo passar o tempo que se tem para
viver na terra;

Seguir seu caminho sem violência,
pagar o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, mas esquecê-los.
Sabedoria é isso!
Mas eu não consigo agir assim.
É verdade, eu vivo em tempos sombrios!


II

Eu vim para a cidade no tempo da desordem,
quando a fome reinava.
Eu vim para o convívio dos homens no tempo
da revolta
e me revoltei ao lado deles.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.
Eu comi o meu pão no meio das batalhas,
deitei-me entre os assassinos para dormir,
Fiz amor sem muita atenção
e não tive paciência com a natureza.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.


III

Vocês, que vão emergir das ondas
em que nós perecemos, pensem,
quando falarem das nossas fraquezas,
nos tempos sombrios
de que vocês tiveram a sorte de escapar.
Nós existíamos através da luta de classes,
mudando mais seguidamente de países que desapatos, desesperados!
quando só havia injustiça e não havia revolta.

Nós sabemos:o ódio contra a baixeza
também endurece os rostos!
A cólera contra a injustiça
faz a voz ficar rouca!
Infelizmente, nós,
que queríamos preparar o caminho para
a amizade,
não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.
Mas vocês, quando chegar o tempo
em que o homem seja amigo do homem,
pensem em nós
com um pouco de compreensão.

07 junho 2009

Kassandra in process - o desassombro da utopia

Kassandra - Tu não estás desesperado, agora?
Enéias - Agora estou contigo e me sinto feliz.
Kassandra - É uma grande felicidade essa.
Enéias - É uma grande felicidade. Tu não pensas como eu?
Kassandra - Penso como tu. Mas por que tu estás tão triste? Há dias os teus olhos cintilavam. Parecia que caminhavas para uma grande festa. Hoje...
Enéias - Hoje eu sei o que eu não sabia. Tu tinhas razão, não era assim, tão simples. Eu pensava que matar era fácil. Que a idéia bastava e a coragem. Mas, agora, eu sei que eu não sou tão grande quanto eu pensava ser e eu sei, também, que não pode existir felicidade no ódio. Todo esse mal. Todo esse mal em mim e nos outros. Guerra, covardia, injustiça. É preciso, é preciso que eu mate. E eu irei até o fim. Mais longe do que o ódio.
Kassandra - Mais longe que o ódio não há nada.
Enéias - Há o amor.
Kassandra - O amor não é o que é preciso.
Enéias - Kassandra, como é que tu podes dizer isso? Tu, cujos sentimentos eu conheço tão bem.
Kassandra - Há demasiado sangue. Há demasiada violência. Os que amam verdadeiramente a justiça não tem direito ao amor. Estão erguidos como eu. Com a cabeça levantada, os olhos fixos. O que faria o amor nessas almas orgulhosas? O amor, Enéias, baixa docemente as cabeças. Mas conosco não é possível. Temos um pescoço demasiado rígido.
Enéias - E nós não amamos, então, o nosso povo?
Kassandra corre na direção de Enéias e, pelas costas, puxa-lhe, violentamente, os cabelos trançados.
Kassandra - Amamos o nosso povo com um vasto amor sem apoio. Vivemos longe dele, trancados nesse lugar, perdidos com os nossos pensamentos. Mas e o povo? Nos ama o povo? Ele sabe, ao menos, que o amamos? O povo cala-se Enéias, e que silêncio!
Enéias ergue Kassandra em seus braços.
Enéias - É isso o amor. Dar tudo, sacrificar tudo sem esperança de recompensa.
Kassandra - Talvez. É o amor absoluto. A alegria pura e solitária. É o amor que, na verdade, me queima. A certas horas, no entanto, eu pergunto a mim mesma se o amor não é outra coisa. Se ele pode deixar de ser um monólogo e se, por vezes, há recompensa. Imagina isso. Vês? O sol brilha, as cabeças abaixam-se docemente, o coração afasta-se do seu orgulho, os braços se abrem.
Enéias vai, aos poucos, deixando-a de costas sobre o chão.
Kassandra - Se pudessemos esquecer por uma hora que fosse o atroz mistério do mundo. Se pudéssemos, enfim, abandonar-nos, Enéias. Tu concebes uma só hora de egoísmo?
Ele puxa-a pelas mãos e as pernas de Kassandra enlaçam sua cintura.
Enéias - Isso se chama ternura.
Kassandra - Adivinhas tudo, meu amor. Isso se chama ternura. Mas tu conheces verdadeiramente a ternura, Enéias? Amas a justiça com ternura? Amas teu povo com abandono e com toda essa doçura ou, ao contrário, com o fogo da vingança e da revolta? Compreendes, então? E a mim, tu me amas com ternura?
Enéias - Nunca ninguém te amará como eu te amo.
Kassandra - Eu sei, mas não será melhor amar como toda a gente?
Enéias - Eu não sou toda a gente. Eu te amo como eu sou.
Kassandra - Me amas mais do que a justiça?
Enéias - Eu não separo a ti e à justiça.
Kassandra desce da cintura de Enéias.
Kassandra - Me amas na solidão com ternura, com egoísmo. Me amarias se eu não fosse justa?
Enéias - Se tu não fosses justa e se eu pudesse te amar, não seria, então, a ti que eu amaria.
Kassandra - Recordo do tempo em que eu era menina. Sabia rir então. Era bonita. Passava horas a passear e a sonhar. Tu gostarias de mim assim, leve e despreocupada?
Kassandra rodopia, segurando as pontas do vestido, tal qual uma criança.
Enéias - Eu morro de desejo de responder que sim.
Kassandra - Diz, então, que sim. Se assim pensas e se é verdade o que pensas, diz que sim. Apesar da guerra, apesar dos que lutam até a morte, apesar da fome.
Enéias - Pára, Kassandra.
Kassandra - Precisamos deixar falar por uma vez os nossos sentimentos. Eu espero que tu me chames a mim, Kassandra, e que me chames por sobre esse mundo envenenado de injustiça.
Enéias - Pára, Kassandra.
Enéias atira Kassandra, brutalmente, ao chão.
Enéias - Os meus sentimentos só falam de ti, mas daqui a pouco minha mão não pode tremer.
Ele deixa-se cair sobre ela, a cabeça encostada em seu ventre.
Kassandra - Daqui a pouco. Eu já tinha me esquecido. Me perdoa, meu amor.
Desvencilhando-se ternamente, Kassandra fala.
Kassandra - Eu também não poderia dizê-lo. Eu te amo com o mesmo amor, um amor um pouco rígido, na guerra e nas prisões.
Ela senta-se, olhando o horizonte.
Kassandra - O verão, Enéias. Tu te lembras do verão?
Enéias senta-se ao seu lado.
Kassandra - Mas o inverno para nós é eterno. Nós não somos desse mundo. Nós somos os justos. Há um calor que não é para nós.


Diálogo extraído de "Os justos" de Albert Camus, cena de Kassandra in process.

05 junho 2009

""
(silêncio)
— Quer dizer que o que está no céu não existe?
— Não, não é isso. O que eu quero dizer é que aquela cor lá você não vai encontrar numa lata para pintar uma parede.
— Janela.
— O quê?
— É janela que eu quero pintar, não parede. E agora nem adianta mais, já mudou tudo. Cor de céu é coisa que muda depressa demais. Foi ficando tão escuro, você reparou? Quase tudo azul, depois preto. O preto vem vindo devagar do outro lado de onde fica o Japão, toda noite.
(silêncio)
— Está anoitecendo. Vamos embora.
— Não quero ir embora. Eu vou dormir aqui.""


amanhã não sei
não sabemos

03 junho 2009

Riqueza e poder.

Na última eleição de 2006, a candidata a governadora Yeda Crusius e oito candidatos a deputados de seu partido, receberam juntos, como doações de campanha, um montante de R$ 494.859,50, quase meio milhão de reais, das empresas Aracruz e Votorantim Celulose e Papel. Torna-se evidente, a partir disto, a responsabilidade destes políticos com as empresas patrocinadoras de suas campanhas na defesa de seus interesses comerciais no Estado, e ainda, a relação entre poder econômico e o poder político na articulação das políticas ambientais no estado do Rio Grande do Sul.
Apesar de saberem dos grandes impactos ambientais e sociais que a monocultura e as indústrias de celulose causam, e ainda da manipulação da informação, por parte das empresas, que chega até o povo, os políticos promovem a implementação destas aqui. Sabemos que estas indústrias geram desigualdade social, tendo em vista que prejudicam os pequenos agricultores de terras vizinhas às plantações de eucalipto, ainda, os poucos empregos gerados têm baixa remuneração e as atividades são grande risco físico para os trabalhadores, entre outras incoerências.
É uma vergonha que técnicos competentes tenham sido substituídos por desconhecedores dos assuntos ambientais, técnicos antigos tenham sido afastados de seus cargos, sendo substituídos por CCs sem experiência e qualificação, estes só estão lá para servir de massa de manobra para o governo do estado e consequentemente das indústrias de eucalipto.
Há a necessidade de nos questionarmos sobre o que significa o desenvolvimento. Aparentemente, o desenvolvimento, para o governo atual, é imediatista, e em seu nome, as políticas ambientais sérias são ignoradas. Não levam em conta a destruição do bioma pampa e de sua imensa diversidade e nem a questão de que a produção de papel é poluente e deve ser diminuída. Além disso, no Brasil o consumo de papel é de 40 quilos por habitante enquanto nos Estados Unidos o consumo é de 300 quilos: então, as indústrias utilizam a nossa terra mais fértil, a nossa mão de obra barata, os incentivos fiscais e as manobras de políticos; para tornarem nosso solo infértil e inutulizável por nosso povo, desalojarem os nossos índios e pequenos agricultores acamando com suas culturas, explorarem os cidadãos trabalhadores, esgotarem a nossa àgua a ponto de ter que desviar os nossos rios para fazer hidrelétricas que supram o consumo dos parques industriais eliminando o habitat de diversas espécies de plantas e de animais, poluírem nosso ar; tudo isto para vender o produto aos grandes consumidores no exterior? Sim, 98% do produto extraído das plantações são exportados. Eles exploram o nosso país e a nossa diversidade e nós nem, ao menos, usufruiremos destes produtos? E eu nem quero! O Brasil continua sendo colônia dos países do hemisfério norte, é o quintal do “primeiro mundo”. O que será que passa na cabeça desses políticos? Talvez, pensem em enriquecer, já que o Brasil é um país emergente e, quando chegarmos a ter condições de concorrer economicamente com a China, daí sim distribuiremos a renda. Não seremos ingênuos de acreditar que os políticos pensarão um dia em distribuir renda, sabemos que não. E mesmo que pensassem, a cada ano, estamos perdendo mais de 5% do que a terra consegue repor, estamos num processo de esgotamento, daqui a uns 10 anos vamos precisar de 2 planetas Terra para suprir em recursos naturais tudo que estamos utilizando agora com este consumo exacerbado.

Descaso do governo Yeda com as políticas ambientais.

Início de tudo:

No governo de Germano Rigoto, a Secretaria do Meio Ambiente (SEMA) , responsável pelas políticas ambientais do RS, através de um grupo de trabalho composto por especialistas da área ambiental, elaborou um Zoneamento Ambiental para Atividade de Silvicultura (ZAS) objetivando o controle da plantação de eucalipto pelas empresas papeleiras no estado. Este foi finalizado na virada de governo de 2006 para 2007; foi aprovado pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA) com a participação de técnicos da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM), Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (FZB-RS), Departamento de Florestas e áreas Protegidas (DEFAP) e uma empresa de consultoria.

Após a posse de Yeda Crusius, no dia 1° de março de 2007, executivos da Stora Enso tiveram uma audiência no Palácio Piratini com a governadora, repetindo roteiro feito pelas outras grandes empresas do setor. Apresentaram seus planos de negócios e reclamaram das restrições impostas pelo plano de zoneamento ambiental para o plantio de silvicultura, elaborado no final de 2006, reclamaram dos entraves ambientais para a execução de seus projetos de expansão de plantio de eucalipto, a governadora afirmou não querer ser responsável pela saída de uma empresa de tamanho porte e que correspondia a grandes investimentos no estado e teria de tomar providências.

Yeda precisava substituir os funcionários responsáveis pelos órgãos ambientais no Estado já que estavam demorando a “resolver o problema”, então, demitiu a secretária do Meio Ambiente, Vera Callegaro, que era bióloga e sua amiga de tempos. Vera Callegaro não discordava da posição desenvolvimentista da governadora, mas, por sua trajetória vinculada ao Meio Ambiente, não descuidava-se em manter o processo legal de conceder as licenças levando em conta todos os passos passando pelas respectivas instâncias, acompanhando os procedimentos técnicos que preservavam o zoneamento amparado por lei. Demitiu também o presidente da FEPAM, Irineu Schneider que é de seu partido, ele fora apontado como responsável pela adoção do zoneamento que não fora concluído “a tempo” e ainda era considerado “restritivo demais” demais pelas empresas. Segundo Paulo Brack, professor da UFRGS , as ONGs ambientalistas fizeram contato com Brasília pedindo a ajuda do IBAMA quanto a saída de Vera Callegaro, mas o Governo Federal orientou que o IBAMA não se envolvesse na questão.

No dia 14 de maio, a governadora anunciou os substitutos. Para a secretaria do Meio Ambiente, foi nomeado o procurador de Justiça Otaviano Brenner, cuja indicação causou uma crise interna no Ministério Público Estadual por haver quem achasse que a participação de um membro do ministério público pudesse influenciar nas decisões do órgão, Brenner defendeu-se: “Buscarei o equilíbrio entre a preservação ambiental e o desenvolvimento econômico que viabiliza a sobrevivência da sociedade. Espero que o trabalho seja facilitado pela colaboração dos servidores”. Para a presidência da FEPAM, foi nomeada a ex-diretora-geral da Secretaria de Segurança Pública, Ana Pellini, que tomou posse com as palavras: “o que me encanta e motiva no governo Yeda é a preocupação com o aprimoramento da gestão nos órgãos públicos estaduais”.

Como primeiras providências quanto à demora da emissão das licenças, foi criado logo de início, um Grupo de Trabalho (GT) para revisar o zoneamento já votado anteriormente. Foram chamados para compor esse grupo representantes da FARSUL (Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul), da FAMURS (Federação da Associação dos Municípios do RS), da FIERGS (Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul), da AGEFLOR (Associação Gaúcha de Empresas Florestais), do SINDMADEIRA (Sindicato da Madeira) e de setores do próprio governo e do legislativo; ficaram de fora desse GT as ONGs ambientalistas, os setores da academia, e foram afastados diversos técnicos responsáveis pelo zoneamento anterior. Ana Pellini foi acusada por diversas irregularidades, ela estaria ameaçando os técnicos da câmara técnica do CONSEMA que não emitissem pareceres a favor das empresas produtoras de celulose no Estado, e afastando os técnicos mais experientes da SEMA, mais de 10 técnicos que estavam envolvidos com o zoneamento, foram retirados do trabalho. Ela também contratou, para este novo zoneamento técnicos da EMATER, que é uma empresa privada.

No início de novembro de 2007 o governo do Estado foi acionado pelo Ministério Público Federal e por um conjunto de ações das ONGs, para que cumprisse as leis, e obtiveram uma liminar que impedia a FEPAM de emitir qualquer tipo de licenciamento ambiental para empreendimentos ligados à silvicultura, o IBAMA passaria a ser responsável por isto. Mas a decisão foi suspensa no final do mês, porque o IBAMA não poderia ser responsabilizado já que “A silvicultura, no RS, sempre foi tratada no âmbito fiscalizatório estadual, inclusive manifestando-se o Ibama, expressamente, pela sua incompetência para licenciar silvicultura”.

A partir daí o zoneamento teve de ser encaminhado novamente para as Câmaras Técnicas do CONSEMA, mas sem data certa para o cumprimento, a direção da FEPAM, então, deu início as discussões do Zoneamento da Silvicultura, as Câmaras Técnicas de Biodiversidade e Florestas, de assuntos Jurídicos e de Agroindústria e Agropecuária tiveram de levar a discussão a fim de colocá-lo em vigor. Muitos parâmetros incluídos inicialmente no ZAS foram questionados, alguns retirados e outros aperfeiçoados, de forma consensual, sendo que os técnicos da FEPAM e da FZB e os ambientalistas, representantes na Câmara Técnica, abriram mão de muitas questões. Houve reunião da Câmara Técnica de Biodiversidade e Política Florestal, do dia 18 de março de 2008, a Presidente da FEPAM, Ana Pellini, que nunca havia participado desta Câmara Técnica, e setores representantes das empresas, alegando estudos insuficientes para a finalização do ZAS, retiraram as principais restrições acordadas anteriormente. Houve votação, quebrando os consensos até então implementados. O resultado foi a modificação de diversos itens, a extinção dos índices de vulnerabilidade e de restrição para as unidades de paisagem e retirada dos limites quanto ao tamanho máximo dos maciços de plantios arbóreos homogêneos e de seus espaçamentos. O argumento da presidente da FEPAM e do grupo gestorinterventor da SEMA era de que qualquer número limitador era prematuro.

O dia 9 de abril de 2008:

Para a aprovação definitiva, o secretário do Meio Ambiente convocou uma reunião extraordinária do CONSEMA a menos de 3 dias de sua realização, esta seria realizada no dia 4 de abril de 2008. Neste dia seriam lidos os relatórios das Câmaras Técnicas, nesta reunião o representante da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), Flávio Lewgoy, pediu vistas aos documentos e tempo suficiente para dar seu parecer, conforme garantia a Resolução n. 64/2004 do CONSEMA, que disponibilizaria pelo menos 15 dias para a elaboração de seu parecer. O presidente do Conselho concedeu somente 3 dias para a análise completa dos documentos que somavam mais de mil páginas e a elaboração do parecer. Assim, no dia 9 de abril a AGAPAN entrou com um Mandado de Segurança na 5ª Vara da Fazenda Pública da Capital, suspendendo a votação no CONSEMA do Zoneamento Ambiental da Silvicultura que aconteceria naquela tarde. A magistrada da 5ª Vara da Fazenda Pública, a juíza Kétlin Carla Pasa Casagrande entendeu que “a entidade demonstrou a impossibilidade de manifestação sobre a Proposta de zoneamento e Pareceres das Câmaras Técnicas do CONSEMA no prazo concedido, que é mínimo, ante a complexidade e efetiva importância da questão a ser analisada”.

Carlos Brenner de Moraes tentou justificar a urgência do tema e iria tentar derrubar a liminar, logo depois saiu da reunião, deixando a responsabilidade de sua coordenação ao secretário adjunto, Francisco Simões Pires. A liminar foi derrubada na noite do dia 9 de abril, após a saída em bloco das ONGs da reunião. A suspensão da liminar que impedia a votação final do ZAS foi dada pelo desembargador Arminio José Abreu Lima da Rosa, Presidente do TJRS (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul), no início da noite. O argumento maior a favor da urgência da votação foi o de evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, já que foram apresentados supostos prejuízos imediatos para o Estado, com o possível corte de investimento de mais de 6 bilhões de reais em função da demora da “definição da matéria ambiental”, além de afirmar que a AGAPAN não poderia desconhecer o projeto que fora discutido por eles mesmos, apesar de serem documentos novos que significavam bruscas alterações ocorridas nas duas últimas semanas, tais mudanças não tinham sido discutidas antes no CONSEMA. Foi aprovado então, o zoneamento guiado por Ana Pellini e Otaviano Brenner por 19 votos na noite do dia 9 de abril, depois da saída em bloco dos representantes das ONGs.

02 junho 2009

Justificativa.

“Eu me sinto superfeliz quando encontro uma pessoa tão confusa quanto eu”
Caio Fernando Abreu

Perdão aos preguiçosos e adeptos aos textos curtos mas hoje deparei-me com "Caio 3D".
Quando às minhas mãos chegam materializados os autores que amo, abro alguma página aleatória buscando o que ele tem a me dizer, assim como Caio fez ao escrever uma carta à Vera Antoun, sim, eu me identifico e fico impressionada ao ver o meu sentimento traduzido. Funciona. Reflito e levo para minha vida, como tudo, sempre. Cheguei em casa com um fragmento decorado da poesia lida para buscar na fonte o resto e beber mais, acabei encontrando o livro inteiro na internet (ah, tanto reclamo disso!). Devorei algumas partes, tive de me conter por culpa de um tempo escasso, mas, do que li, deixei aqui o mais parecido comigo. Chorei, e foi como desabafo. Obrigada, Caio, por compartilhar comigo, me possibilitar chorar e desabafar contigo, por ti, e por mim através de ti.

Caio Fernando Abreu - A QUEM INTERESSAR POSSA

A QUEM INTERESSAR POSSA

eu não tenho culpa não fui eu quem fez as coisas ficarem assim desse jeito que não entendo que não entenderia nunca você também não tem culpa vou chamá-lo de você porque ninguém nunca ficará sabendo nem era preciso a culpa é de todos e não é de ninguém não sei quem foi que fez o mundo assim horrível às vezes quando ainda valia a pena eu ficava horas pensando que podia voltar tudo a ser como antes muito antes dos edifícios dos bancos da fuligem dos automóveis das fábricas das letras de câmbio e então quem sabe podia tudo ser de outra forma depois de pensar nisso eu ficava alegre quem sabe quem sabe um dia aconteceria mas depois pensava também que não ia adiantar nada e tudo começaria a ficar igual de novo no momento que um homem qualquer resolvesse trocar duas pedras por um pedaço de madeira porque a madeira valia mais e de repente outra vez iam existir essas coisas duras que vejo da janela na televisão no cinema na rua em mim mesmo e que eu ia como sempre sair caminhando sem saber aonde ir sem saber onde parar onde pôr as mãos os olhos e ia me dar aquela coisa escura no coração e eu ia chorar chorar durante muito tempo sem ninguém ver é verdade tenho pena de mim e sou fraco nunca antes uma coisa nem ninguém me doeu tanto como eu mesmo me dôo agora mas ao menos nesse agora eu quero ser como eu sou e como nunca fui e nunca seria se continuasse me entende eu não conseguiria não você não me entendeu nem entende nem entenderia você nem sequer soube sabe saberá amanhã você vai ler esta carta e nem vai saber que você poderia ser você mesmo e ainda que soubesse você não poderia fazer nada nem ninguém eu já não acredito nessas coisas por isso eu não te disse compreende talvez se eu não tivesse visto de repente o que vi não sei no momento em que a gente vê uma coisa ela se torna irreversível inconfundível porque há um momento do irremediável como existem os momentos anteriores de passar adiante tentando arrancar o espinho da carne há o momento em que o irremediável se torna tangível eu sei disso não queria demonstrar que li algumas coisas e até aprendi a lidar um pouco com as palavras apesar de que a gente nunca aprende mas aprende dentro dos limites do possível acho não quero me valorizar não sou nada e agora sei disso eu só queria ter tido uma vida completa elas eram horríveis mas não quero falar nisso podia falar de quando te vi pela primeira vez sem jeito de repente te vi assim como se não fosse ver nunca mais e seria bom que eu não tivesse visto nunca mais porque de repente vi outra vez e outra e outra e enquanto eu te via nascia um jardim nas minhas faces não me importo de ser vulgar não me importa o lugar-comum dizer o que outros já disseram não tenho mais nada a resguardar um momento à beira de não ser eu não sou mais tudo se revelou tão inútil à medida em que o tempo passava tudo caía num espaço enorme amar esse espaço enorme entre mim e você mas não se culpe deixa eu falar como se você não soubesse não se culpe por favor não se culpe ainda que esse som na campainha fosse gerada pelos teus dedos eu não atenderia eu me recuso a ser salvo e é tão estranho o entorpecimento começa pelos pés aquela noite eu ainda esperava quase digo sem querer teu nome digo ou escrevo não tem importância vou escrevendo e falando ao mesmo tempo com o gravador ligado é estranho me desculpa saí correndo no parque e me joguei na água gelada de agosto invadi sem ter direito a névoa dos canteiros destaquei meu corpo contra a madrugada esmaguei flores não nascidas apertei meu peito na laje fria do cimento a névoa e eu o parque e eu a madrugada e eu costurado na noite cerzido no escuro porque me dissolvia à medida em que me integrava no ser do parque e me desintegrava de mim mesmo preenchendo espaços aqueles enormes es'paços brancos terrivelmente brancos e você não teve olhos para ver que o parque era você a água você a névoa você a madrugada você as flores você os canteiros você o cimento você não teve mãos para mim só aquela ternura distraída a mesma dos edifícios e das ruas mas eles me desesperavam você me desesperava eu não quero falar nelas mas elas estão na minha cabeça como os meus cabelos e as vejo a todo instante cantando aquela canção de morte a minha carne dilacerada e eu ridículo queria ter uma vida completa você não se parecia com Denise tinha os olhos de mangaba madura os mesmos que tive um dia e perdi não sei onde não sei por que e de repente voltavam em você nos cabelos finos muito finos finos como cabelos finos 'minto que me bastaria tocá-los para que tudo fosse outra vez mas não toquei eu não tocaria nunca na carne viva e livre eles me rotularam me analisaram jogaram mil complexos em cima de mim problemas introjeções fugas neuroses recalques traumas e eu só queria uma coisa limpa verde como uma folha de malva aquela mesmo que existiu ao lado do telhado carcomido do poço e da paineira mas onde me buscava só havia sombra eu me julgava demoníaco mas não pense que estou disfarçando e pensando como-eu-soubonzinho-porque-ninguém-me-ama eu me achava envilecido me sentia sórdido humilhado uma faixa de treva crescia em mim feito um câncer a minha carne lacerada estou dentro dessa carne lacerada que anda e fala inútil a carne conjunta das xifópagas e o vento um vento que batia nos ciprestes e me levava embora por sobre os telhados as cisternas as varandas os sobrados os porões os jardins o campo o campo e o lago e a fazenda e o mar eu quero me chamar Mar você dizia e ria e ríamos porque era absurdo alguém querer se chamar Mar ah mar amar e você dizia coisas tolas como quando o vento bater no trigo te lembrarás da cor dos meus cabelos você não vai muito além desses príncipes pequenos suas palavras todas não tenho culpa não tenho culpa eram de quem pedia cativa-me eu já não conseguiria bem lento eu não conseguiria eu não sei mais inventar. a não ser coisas sangrentas como esta a minha maneira de ser um momento à beira de não mais ser não me permite um invento que seja apenas um entrecaminho para um outro e outro invento mesmo a destruição tem que ser final e inteira qualquer coisa tem que ser a última uma era inteira e a outra nascia da cintura e existia só da cintura para cima como um ipsilone mole esponjosa uma carne vil uma carne preparada por toda uma estrutura de guerras epidemias pestes ódios quedas eu me sentia culpado ao vê-las assim nosso podre sangue a humanidade inteira nelas que não riam e cantavam aquela sombria canção de morte brutalmente doce elas cantavam e minhas costas doíam como se eu sozinho as sustentasse e não uma à outra mas eu eu com este sangue apodrecido que assassina crianças de fome droga adolescentes bombardeia cidades e também você e todos nós grudados indissoluvelmente grudados nojentos mas me recuso a continuar ninguém sofrerá por mim sem mim chorar ninguém entende nem precisa nem você nem eu o anel que tu me deste sobre a folha que me contém sem compreender sem compreender que você carrega toda uma culpa milenar e imperdoável a História como concreto sobre os teusmeusnossos ombros Cristo sobre nossos ombros todas as cruzes do mundo e as fogueiras da inquisição e os judeus mortos e as torturas e as juntas militares e a prostituição e doenças e bares e drogas e rios podres e todos os loucos bêbados suicidas desesperados sobre os teus meus nossos ombros leves os teus porque não sabes sim sim eu tenho culpa não é de ninguém esse desgosto de lâmina nas entranhas não é de ninguém esse sangue espantado e esse cosmos incompreensível sobre nossas cabeças não posso ser salvo por ninguém vivo e os mortos não existem a fita está acabando começo a ficar tonto a dormência chegou quem sabe ao coração talvez eu pudesse eu soubesse eu devesse eu quisesse quem sabe mas não chore nem compreenda te digo enfim que o silêncio e o que sobra sempré como em García Lorca solo resta el silêncio un ondulado silêncio os espaço de tempo a nos situar fragmentados no tempoespaçoagora não sei onde fiquei onde estive onde andei nada compreendi desta travessia cega a mesma névoa do parque outra vez a mesma dor de não ser visto elas gritam sua canção de morte este sangue nojento escorrendo dos meus pulsos sobre a cama o assoalho os lençóis a sacada a rua a cidade os trilhos o trigo as estradas o mar o mundo o espaço os astronautas navegando por meu sangue em direção a Netuno e rindo não não quebres nunca os teus invólucros as tuas formas passa
Lentamente a mão do anel que eu te dei e era vidro depois ri ri muito ri bêbado ri louco ri ate te surpreenderes com a tua não dor até te surpreenderes com não me ver nunca mais e com a desimportancia absoluta de não me ver nunca mais e com minha mão nos teus cabelos distante invisível intocada no vento
Perdida a minha mão de espuma abrindo de leve esta porta assim.

Cara de Caio Fernando Abreu para Vera Antoun

A VERA ANTOUN

London, 19/10/73

“Fui o único culpado da nossa separação
Por isso tenho amargado, margando na solidão
Mas tenho os olhos tranqüilos, de quem sabe seu preço,
Vou navegando, vou temperando,
Pra cima a coisa toda muda.
Pra baixo todo santo ajuda.”

Outro dia senti frio na alma. Foi no Holland Park, pisando num enorme tapete de folhas douradas. Aí senti o outono, o cinzento se acentuando nas coisas, as pessoas se virando para dentro — o inverno chegando depressa, um frio de rachar. Na alma mesmo. As tuas 1.001 cartas
cheias de sunshine dareavam um pouco os dias, as transas. Que te dizer? Que te amo, que te esperarei um dia numa rodoviária, num aeroporto, que te acredito, que consegues mexer dentro-dentro de mim? É tão pouco. Não te preocupa. O que acontece é sempre natural — se a gente tiver que se encontrar, aqui ou na China, a gente se encontra. Penso em você principalmente como a minha possibilidade de paz — a única que pintou até agora, “nesta minha vida de retinas fatigadas”. E te espero. E te curto todos os dias. E te gosto. Muito. Tô morando, trabalhando, estudando e amando. Esses são os quatro foles da minha vida, no momento, e sobre cada um deles eu teria milhares de páginas a preencher. Sei lá, menina, tá tudo tão legal — e um legal tão batalhado, um legal merecido, de costas e pernas doendo, mas coração tranqüilo. Augusto, Mansa e eu conseguimos um apartamentinho lindo, num lugar ótimo, no aluguel se foi todo nosso dinheiro, Augusto começou a trabalhar logo, eu e Mansa ficamos duríssimos. Foi chato, apanhei uma gripe e alguns grilos — até que esta semana comecei a fazer limpeza numas casas. O primeiro dia foi terrível: eu tinha medo de não saber fazer nada, de não entender nada. Não dormi à noite, tive dor de barriga. Aí me desdobrei, fiz tudo direitinho — o meu inglês aos poucos está começando a fluir e, se ainda não consigo ter uma conversa, pelo menos já me comunico. Isso me deixa feliz à beça, eu tava me sentindo meio retardado, meio analfabeto. Fluência agora é uma questão de tempo. No meio de tudo isso, pintou uma pessoa. É um menino cubano chamado Nelson — ele saiu de Cuba aos 11 anos, morou nos Estados Unidos uma porção de tempo e agora está aqui, estudando dança moderna. É Libra, ascendente Virgem — eu sou Virgem ascendente Libra. Foi, está sendo, lindo. Sei lá, eu tava me sentindo muito cansado, muito carente — e me recusava a procurar qualquer transa. Estava completamente só, há quase seis meses. Eu sabia que ia pintar — eu vim para Londres porque sabia que aqui ia pintar. E pintou. Foi a maior força possível — me recuperei completamente do complexo de inferioridade e de abandono, senti outra vez aquelas coisas, lembrei de todas as letras do Roberto Carlos — fiquei, enfim, meio cafona como sempre fico nessas situações, mas agora já voltei a pisar na terra — tudo fica mais concreto, e eu compreendo melhor. Dei pulos com o endereço da Sílvia — eu não sabia que ela estava aqui. Como não tem telefone, escrevi urna carta ontem. Acho que ela vai pintar aqui neste fim de semana. Vai ser um pouco como rever você, sabe? Acho que você vai gostar de saber: estou há quase dois meses firme na macrobiótica. Não é uma dieta rígida porque, trabalhando, não há mesmo condições. Mas cortei completamente a carne, como arroz integral e muitos vegetais, chá de Mu — não tomo refrigerantes nem café. Só não consigo cortar o cigarro. Mas parei também com o haxixe, porque a minha cuca anda ficando meio pirada ao natural — e eu acho que realmente já passei por tudo isso. Outra coisa: a vontade de escrever VOLTOU. Não sei se foi o impulso que o Nelson me deu, ou mesmo Londres — a verdade é que voltou. Só que eu não consigo escrever a mão — não dá mesmo, uma carta ainda sai, mas um conto não tem jeito — é primitivo e lento demais. Estou tentando economizar para comprar uma máquina de escrever — é o meu sonho atual, bem humildezinho como você vê. Voltei a ver o tarot, depois de deixá-lo descansar por uns dois meses. Parece que Medéia recuperou os seus poderes. Olha, estou com a sensação de estar escrevendo uma carta muito besta. Vou parar. Abro à toa o Fernando Pessoa e peço uma mensagem para ti. Ele manda dizer isto:
“Tuas mãos esguias, um pouco pálidas, um pouco minhas,
Estavam naquele dia quietas pelo teu regaço de sentada,
Como e onde a tesoira e o ideal de uma outra.
Cismavas, olhando-me como se eu fosse o espaço.
Recordo para ter o que pensar, sem pensar.
De repente, num meio suspiro, interrompeste o que estavas sendo
Olhaste conscientemente para mim e disseste:
‘Tenho pena que todos os dias não sejam assim’.”
Podem voltar a ser, quem sabe? Acendo vela, queimo incenso — falo de você para Augusto e Mansa, lembro Leme, Botafogo, coloco o disco da Gal e fico ouvindo The archaic lonely blues — eu sei não me diga. Verinha, tudo passa, tudo vai embora — a gente tem que se encontrar. Meu livro deve sair no Brasil talvez até o fim do ano — eu ganharia + ou - 2.000 com a publicação — a gente podia usar esse dinheiro para a tua passagem, não é? Mas, sei lá, não queria que você viesse apenas por mim, entende? Em qualquer circunstância, eu acho, a experiência Europa é fundamental — desde que não se corte nenhum processo importante por aí. E pelas minhas cartas suecas você deve ter percebido que não é absolutamente uma coisa leve. A gente sangra e geme — mas sai mais vivo, “com a vida dividida pra lá e pra cá”. O que não queria é que você futuramente talvez me culpasse, entende? Mas acho que é besteira ficar tentando desvendar o futuro — apesar do tarot e do 1 Ching. Ao mesmo tempo gostaria que tomássemos alguma providência sobre a sua vinda. Mande me dizer o que você pensa de tudo isso mas pense bem, é uma coisa séria — muito mais do que a gente pensa quando está aí. Vou dormir. Amanhã é sábado, tem Portobello. Estou morto de cansaço, e minha cuca dói de tanto esforço, o dia inteiro, para pensar, falar e entender inglês. Às vezes, falando ou escrevendo em português, tenho uns brancos — só vem inglês. Ou acabo apanhando uma antipatia mortal por essa língua ou viro o maior admirador da face da Terra. Quero sonhar com você, com o sol e o cometa que vem no fim do ano — eu tô sabendo.
Caio.

01 junho 2009

Fulana de Tal já não sabia se pecava pela falta ou pelo excesso, qual seria o melhor? Parecia o não pecar: a medida.
Como encontrá-la?
- Se ao menos fosse possível seguir a letra da música...
Estava perdida, a solução aparente parecia cruel. O pecado lhe perseguia sempre, a falta e o excesso.
- Malditos - pensava.
Porque estavam sempre com ela?
Sabia que ficar parada não adiantaria, mas para onde ir? Simplesmente andar sem direção? Não sabia, não entendia. Aliás, não entendia quase nada. Convicções, sim, estavam lá, mas e o resto? Precisava que os dias fossem seus amigos e as noites a aconselhassem. Seus sonhos eram simples. Fulana de Tal acreditava na mudança, não sabia se ela viria com a falta, com o excesso, ou com a medida; acreditava nela, na medida, mas ao mesmo tempo tinha medo que a medida fosse a falta ou o excesso...estava confusa, definitivamente. Palpites? Sim. Intuições? Não, nestas não acreditava. Parecia arriscado firmar-se nestas abstrações, buscava caminho concreto. Precisaria dos seus amigos: dias e noites. Precisaria também caminhar, acreditando que durante este caminho nada iria se perder ou modificar. Mas porque esse medo? Não, não entendia...deu-se conta da necessidade de olhar-se, olhar-se de dentro para fora e também de fora para dentro. Ver-se, de fato. Enxergar-se. Será que as respostas estariam em si? Não sabia...resolveu arriscar.