07 junho 2009

Kassandra in process - o desassombro da utopia

Kassandra - Tu não estás desesperado, agora?
Enéias - Agora estou contigo e me sinto feliz.
Kassandra - É uma grande felicidade essa.
Enéias - É uma grande felicidade. Tu não pensas como eu?
Kassandra - Penso como tu. Mas por que tu estás tão triste? Há dias os teus olhos cintilavam. Parecia que caminhavas para uma grande festa. Hoje...
Enéias - Hoje eu sei o que eu não sabia. Tu tinhas razão, não era assim, tão simples. Eu pensava que matar era fácil. Que a idéia bastava e a coragem. Mas, agora, eu sei que eu não sou tão grande quanto eu pensava ser e eu sei, também, que não pode existir felicidade no ódio. Todo esse mal. Todo esse mal em mim e nos outros. Guerra, covardia, injustiça. É preciso, é preciso que eu mate. E eu irei até o fim. Mais longe do que o ódio.
Kassandra - Mais longe que o ódio não há nada.
Enéias - Há o amor.
Kassandra - O amor não é o que é preciso.
Enéias - Kassandra, como é que tu podes dizer isso? Tu, cujos sentimentos eu conheço tão bem.
Kassandra - Há demasiado sangue. Há demasiada violência. Os que amam verdadeiramente a justiça não tem direito ao amor. Estão erguidos como eu. Com a cabeça levantada, os olhos fixos. O que faria o amor nessas almas orgulhosas? O amor, Enéias, baixa docemente as cabeças. Mas conosco não é possível. Temos um pescoço demasiado rígido.
Enéias - E nós não amamos, então, o nosso povo?
Kassandra corre na direção de Enéias e, pelas costas, puxa-lhe, violentamente, os cabelos trançados.
Kassandra - Amamos o nosso povo com um vasto amor sem apoio. Vivemos longe dele, trancados nesse lugar, perdidos com os nossos pensamentos. Mas e o povo? Nos ama o povo? Ele sabe, ao menos, que o amamos? O povo cala-se Enéias, e que silêncio!
Enéias ergue Kassandra em seus braços.
Enéias - É isso o amor. Dar tudo, sacrificar tudo sem esperança de recompensa.
Kassandra - Talvez. É o amor absoluto. A alegria pura e solitária. É o amor que, na verdade, me queima. A certas horas, no entanto, eu pergunto a mim mesma se o amor não é outra coisa. Se ele pode deixar de ser um monólogo e se, por vezes, há recompensa. Imagina isso. Vês? O sol brilha, as cabeças abaixam-se docemente, o coração afasta-se do seu orgulho, os braços se abrem.
Enéias vai, aos poucos, deixando-a de costas sobre o chão.
Kassandra - Se pudessemos esquecer por uma hora que fosse o atroz mistério do mundo. Se pudéssemos, enfim, abandonar-nos, Enéias. Tu concebes uma só hora de egoísmo?
Ele puxa-a pelas mãos e as pernas de Kassandra enlaçam sua cintura.
Enéias - Isso se chama ternura.
Kassandra - Adivinhas tudo, meu amor. Isso se chama ternura. Mas tu conheces verdadeiramente a ternura, Enéias? Amas a justiça com ternura? Amas teu povo com abandono e com toda essa doçura ou, ao contrário, com o fogo da vingança e da revolta? Compreendes, então? E a mim, tu me amas com ternura?
Enéias - Nunca ninguém te amará como eu te amo.
Kassandra - Eu sei, mas não será melhor amar como toda a gente?
Enéias - Eu não sou toda a gente. Eu te amo como eu sou.
Kassandra - Me amas mais do que a justiça?
Enéias - Eu não separo a ti e à justiça.
Kassandra desce da cintura de Enéias.
Kassandra - Me amas na solidão com ternura, com egoísmo. Me amarias se eu não fosse justa?
Enéias - Se tu não fosses justa e se eu pudesse te amar, não seria, então, a ti que eu amaria.
Kassandra - Recordo do tempo em que eu era menina. Sabia rir então. Era bonita. Passava horas a passear e a sonhar. Tu gostarias de mim assim, leve e despreocupada?
Kassandra rodopia, segurando as pontas do vestido, tal qual uma criança.
Enéias - Eu morro de desejo de responder que sim.
Kassandra - Diz, então, que sim. Se assim pensas e se é verdade o que pensas, diz que sim. Apesar da guerra, apesar dos que lutam até a morte, apesar da fome.
Enéias - Pára, Kassandra.
Kassandra - Precisamos deixar falar por uma vez os nossos sentimentos. Eu espero que tu me chames a mim, Kassandra, e que me chames por sobre esse mundo envenenado de injustiça.
Enéias - Pára, Kassandra.
Enéias atira Kassandra, brutalmente, ao chão.
Enéias - Os meus sentimentos só falam de ti, mas daqui a pouco minha mão não pode tremer.
Ele deixa-se cair sobre ela, a cabeça encostada em seu ventre.
Kassandra - Daqui a pouco. Eu já tinha me esquecido. Me perdoa, meu amor.
Desvencilhando-se ternamente, Kassandra fala.
Kassandra - Eu também não poderia dizê-lo. Eu te amo com o mesmo amor, um amor um pouco rígido, na guerra e nas prisões.
Ela senta-se, olhando o horizonte.
Kassandra - O verão, Enéias. Tu te lembras do verão?
Enéias senta-se ao seu lado.
Kassandra - Mas o inverno para nós é eterno. Nós não somos desse mundo. Nós somos os justos. Há um calor que não é para nós.


Diálogo extraído de "Os justos" de Albert Camus, cena de Kassandra in process.

3 comentários:

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