Trechos de "O Rei da Vela"
Oswald de Andrade
ato I
...
Mais o Intelectual Pinonte
Entra Pinote de chapéu de poeta na mão. Uma gravata lírica. Sorrindo. Mesuras. Traz uma faca enorme de madeira como bengala.
PINOTE Bom dia, mestre.
HELOÍSA dá um grito lancinante
Ai! Faca!
ABELARDO I É um revoltado?
PINOTE Absolutamente não! Fui, no colégio. Hoje sou quase um conservador! O que me falta é a convicção.
ABELARDO I Tem veleidades sociais...quero dizer, bolchevistas?...
PINOTE Não senhor! Olhe, tenho até nojo de gente baixa...gente de trabalho...não vai comigo!
ABELARDO I Muito bem
PINOTE Gente que cheira mal...
HELOÍSA Ninguém dá sabão a eles para se lavarem.
ABELARDO II Nem pão, quanto mais sabonete...
ABELARDO I Não se incomode. Ele é socialista. Mas moderado, de faca também. Mas, afinal qual é o gênero literário que cultiva, meu amigo?
PINOTE Os grandes homens! Pretendo fazer como Ludwig. Escrever grandes vidas! Não há mais nobre missão sobre o planeta! Os heróis da época.
ABELARDO I Pode ser também extremamente perigoso. Se nas suas biografias exaltar os heróis populares e inimigos da sociedade. Imagine se o senhor escrever sobre a revolta dos marinheiros pondo em relevo o João Cândido...ou algum comunista morto num comício.
PINOTE Não há perigo. A polícia me perseguiria.
ABELARDO I Então é um intelectual policiado...Não pratica literatura de ficção?
PINOTE No Brasil não dá nada!
ABELARDO I Sim, a de fricção é que rende. É preciso ser assim, meu amigo. Imagine se vocês que escrevem fossem independentes! Seria o dilúvio! A subversão total. O dinheiro só é útil nas mãos dos que não têm talento. Vocês escritores, artistas, precisam ser mantidos pela sociedade na mais dura e permanente miséria! Para servirem como bons lacaios, obedientes e prestimosos. É a vossa função social! Sirva então francamente os de cima. Mas não é só com biografias neutras...Precisamos de lacaios...
PINOTE É! Mas dizem por aí que a Revolução Social está próxima. Em todo o mundo. Se a coisa virar?
ABELARDO I Será fuzilado com todas as honras. É preferível morrer como inimigo do que como adesista.
PINOYTE E minha família? E as três crianças?
ABELARDO I Saia daqui já! Vilão! Oportunista! Não leva nem dez mil-réis, creia! A minha classe precisa de lacaios. A burguesia exige definições! Lacaios, sim! Que usem fardamento! Rua!
Pinote retira-se penosamente.
Menos o intelectual Pinote e Abelardo II
HELOÍSA Coitado!
ABELARDO I Voltará! De camisa amarela, azul ou verde. E de alabarda. E ficará montando guarda à minha porta! E me defenderá com a própria vida da maré vermelha que ameaça subir, tomar conta do mundo! O intelectual deve ser tratados assim. As crianças que choram em casa, as mulheres lamentosas, fracas, famintas, são a nossa arma! Só com a miséria eles passarão a nosso inteiro e dedicado serviço! E teremos louvores, palmas e garantias! Eles defenderão as minhas posições e a tua ilha, meu amor!
HELOÍSA Ora, uma ilha brasileira!...Estou quase não querendo... Em troca da minha liberdade. Chegamos ao casamento...Que você no começo dizia ser a mais imoral das instituições humanas.
ABELARDO I É a mais útil à nossa classe...A que defende a herança.