Ainda era cedo para acender as lâmpadas, o que pelo menos precipitaria uma noite. A noite que não vinha, não vinha, não vinha, que era impossível. E o seu amor que agora era impossível — que era seco como a febre de quem não transpira, era amor sem ópio nem morfina. E "eu te amo" era uma farpa que não se podia tirar com uma pinça. Farpa incrustada na parte mais grossa da sola do pé. Ah, e a falta de sede. Calor com sede seria suportável. Mas ah, a falta de sede. Não havia senão faltas e ausências. E nem ao menos a vontade. Só farpas sem ponta salientes por onde serem pinçadas e extirpadas. Só os dentes estavam úmidos. Dentro de uma boca voraz e ressequida os dentes úmidos mas duros — e sobretudo a boca voraz para nada. E o nada era quente naquele fim de tarde eternizada pelo planeta Marte. Seus olhos abertos e diamantes. Nos telhados os pardais secos. "Eu vos amo, pessoas", era frase impossível. A humanidade lhe era como morte eterna que no entanto não tivesse o alívio de enfim morrer. Nada, nada morria na tarde enxuta, nada apodrecia. E às seis horas da tarde fazia meio-dia. Fazia meio-dia com um barulho atento de máquina de bomba de água, bomba que trabalhava há tanto tempo sem água e que virará ferro enferrujado: há dois dias faltava água em diversas zonas da cidade. Nada jamais fora tão acordado como seu corpo sem transpiração e seus olhos-diamantes, e de vibração parada. Nem mesmo a angústia. O peito vazio, sem contração. Não havia grito. Dor? Nenhuma. Nenhum sinal de lágrima e nenhum suor. Sal nenhum. Só uma doçura pesada: como a da casca lenta dos elefantes de couro ressequido. A esqualidez límpida e quente. Pensar no seu homem? Não, era a farpa na parte coração dos pés. Ah, se as mãos começassem a se umedecer. Nem que houvesse água, por ódio não se banharia. Era por ódio que não havia água. Nada escorria. A dificuldade era uma coisa parada. E uma jóia diamante. A cigarra de garganta seca não parava de rosnar. Por seco e calmo ódio, quero isso mesmo, este silêncio feito de calor que a cigarra rude torna sensível. Sensível? Não se sente nada. Senão esta dura falta de ópio que amenize. Quero que isto que é intolerável continue porque quero a eternidade. Quero esta espera contínua como o canto avermelhado da cigarra, pois tudo isso é a morte parada, é a Eternidade de trilhões de anos das estrelas e da Terra, é o cio sem desejo, os cães sem ladrar. É nessa hora que o bem e o mal não existem. É o perdão súbito, nós que nos alimentávamos com gosto secreto da punição. Agora é a indiferença de um perdão. Pois não há mais julgamento. Não é um perdão que tenha vindo depois de um julgamento. É a ausência de juiz e condenado. E não chove, não chove. Não existe menstruação. Os ovários são duas pérolas secas. Vou vos dizer a verdade: por ódio seco, quero é isto mesmo, e que não chova.
Clarice Lispector - Trecho de "A Origem da Primavera ou A Morte Necessária em Pleno Dia".
2 comentários:
Nossa, que texto mais lindo, Le!! Amei! vou guardar ele aqui!
Oi, seu blog fez minha leitura da tardezinha pra noite de domingo. Foi um Prazer,viu?
Abraço
Neusa Doretto
http://poesiarapida.blogspot.com
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