18 agosto 2009

Vicente

Esqueci de mim. De tudo! Senti-me no começo de uma grande busca, perto de algo terrível! O mundo parou e eu me transformei em um homem diante de sua razão. Foi aí que a pergunta brotou pela primeira vez: Quem sou eu? Quem? Era o canto que começava. Então, minha verdade saiu da terra, cresceu e ultrapassou a mata. Percebi...como devia ser maravilhoso compreender, interpretar e transmitir! Partir da minha casa, minha gente, de mim mesmo...e chegar ao significado de tudo, tendo como instrumentos de trabalho apenas as palavras e a vontade. Não usar nenhum suor, a não ser o meu. Nenhum braço, além dos meus. Nenhuma inteligência, exceto a minha. Isto era ser livre! Eu me comunicaria! Seria tudo!
Existem nessa cidade cinco milhões de habitantes! Como levar a eles o que é preciso dizer?
Há muitas coisas em minha vida, Lavínia, pedindo explicações. De muitas, lembro-me bem. Mas, são as escondidas que nos atormentam. As que ficam perdidas não sei em que imobilidade, agarradas às paredes como hera, guardadas em fundo de gaveta de cômodas velhas, refletidas em caixilhos, escondidas dentro de nós...!
Por que não posso ser o que sou? Escapar desse mundo, caduco para mim, e me comunicar...de uma maneira ou de outra. Deve haver algum meio! Mas sinto que falta sentido em tudo! Será que estou no caminho errado Lavínia? Vivemos numa sociedade em crise, de estruturas abaladas, valores negados, soluções salvadoras que não levaram a nada! Qual o caminho certo? Onde achar a resposta? No presente? No passado? Será que fiquei apenas em lamentações sobre a decadência...sem ter saído dela? Não posso passar a vida perguntando quem sou eu! Será que a incompreensão tem sido minha? A verdade já estará solta nas ruas...e eu não estou vendo? Tenho procurado resposta e não encontro. De tanto viver perguntas sem resposta, vou acabar andando à minha volta...e não chegarei nunca a uma solução.

"É que...já não sei até que ponto...tudo que quero dizer tem importância." - Vicente com 5, 15, 23 e 43 anos de idade. Encontrou a resposta? Nem ele sabe. Alguns trechos das falas do personagem em Rasto Atrás de Jorge Andrade.
Parecia que havia destruído um mundo dentro de mim e não conseguia substituí-lo. Eu sei que o fracasso também é positivo, mas quando se tem coragem de voltar-se para dentro de si mesmo e avaliar os erros que cometemos. Devo aproveitá-lo para entender-me...e criar alguma coisa. Para isso, preciso compreender esse passado e me libertar. Pensei que tivesse encontrado a explicação da angústia, de minha vida. Agora, vejo que tenho mentido. A pior coisa que pode acontecer a um autor, Lavínia, é perceber que mente e não saber como sair da mentira.

Vicente, personagem de Rasto Atrás de Jorge Andrade

16 agosto 2009

"Você é mais um conjunto de reações do que propriamente um ser humano."

Essa doeu.

11 agosto 2009

Acordou com ótimo humor, isso sempre acontecia depois de passar a noite lendo algo que lhe dava prazer, mas a briga com o melhor amigo fora inevitável. Luzia ficou pensativa. Ele pedira desculpas, mas o ocorrido não se apagaria, a cabeça ardia - dissera tudo? A imaginação a levaria longe, melhor seria parar de pensar. Tudo bem - Luzia respirou fundo - Até a noite restam muitas horas e elas precisam passar macias. Um telefonema, mais uma noite sozinha, a amiga que lhe faria companhia para ir ao cinema acabara de brigar com o namorado. Tudo bem - Estava acostumada e o fim do expediente se aproximava, iria, enfim, descansar. Depois de quase atropelar um cachorro, chegou em casa com o coração vazio de sempre. Faria algo simples para comer. Queria deitar-se, esquecer-se do quanto estava sozinha, esquecer-se do quanto era difícil continuar com tudo aquilo. Antes de dormir, escolheria para ler o que pudesse traduzir o que vivera hoje, assim poderia aliviar-se, e, quem sabe, acordar de bom humor.
O telefone tocou, uma amiga de longe, disse "Lú, tô grávida. Tu vai ser Dinda!"

- Cara, cara, uau!

E com essa notícia o peito de Luzia se encheu: era amor brotando. Daria amor, amor incondicional ao serzinho que chegaria logo mais. Delícia!

- Vida nova chegando! Oba, oba!

Desligou. Por alguns instantes refletiu: talvez fosse egoísta. Mas, com tranquilidade e um sorriso leve nos lábios foi dormir.

10 agosto 2009

O Ovo

Eu brincava com as crianças, as crianças brincavam comigo. Como todo o mundo vezenquando a gente brigava, pisava caco de vidro, roubava laranja, fugia pra tomar banho no rio. Uma vez também uma menina segurou no meu pinto. Ela era loira, gorda, tinha um tranção até a cintura. Depois ela casou com um soldado da brigada, prendeu as tranças em volta da cabeça, mas continuou gorda. Dessas gordas que à tardinha se debruçam na janela sobre uma almofada de cetim rosa. Toda vez que eu vinha do emprego passava em frente à casa dela e olhava exatamente como quem pensa "você uma vez segurou no meu pinto". Lógico, ela não me cumprimentava. Acho que não é muito comum as meninas que seguram nos pintos dos meninos cumprimentarem eles depois que crescem e casam.
Quando eu tinha uns treze anos arranjei uma namorada que namorei até os dezessete. Essa nunca segurou no meu pinto, e era diferente, dessas pra casar pelo menos naquela época eu pensava assim. Só há pouco tempo, depois que vim para cá, é que me convenci de que são todas umas vacas. E os homens, uns cães. Todos eles sabendo e fingindo que não sabem. A mãe da minha namorada ficava a noite inteira sentada com a gente na sala, só levantava para trazer doce de leite, de abóbora ou de batata-doce. A menina vezenquando tocava piano, mal para burro, diga-se de passagem. Mas eu nem ouvia direito. É que quando ela sentava um pedaço da saia levantava e apareciam umas coxonas muito brancas e grossas. Eu olhava discreto, o máximo que fazia era derrubar alguma coisa no chão pra ver melhor. Eu era um moço de respeito.
Quando tinha dezoito anos, ela casou. Com um soldado da brigada. Foi então que pensei seriamente em entrar para a brigada, já que duas mulheres da minha vida tinham casado com soldados. Parecia que eu estava destinado a sempre perdê-las para eles. Só que eu achava horrível aquela roupa, os coturnos, o casquete -tudo. Mas se eu queria casar - e naquele tempo eu queria - tinha que ser soldado. Até que descobri uma solução melhor. Perto da minha casa morava um soldado da brigada. A minha mãe era madrinha dele, a mãe dele era viúva. Quando crianças, nós brincávamos muito, mas era um guri esquisito como o diabo. Todo delicado, cheio de não-me-toques, loirinho,com uns olhos claros, uma cor que eu nunca mais consegui lembrar depois que ele se matou. Todos os sábados de manhã ele ia visitar mamãe, levava umas frutas ou doce qualquer que a mãe dele tinha feito e ficava conversando na sala, feito moça. Logo que minha namorada casou eu nem olhava pra ele, de tanto ódio. Depois comecei a armar uma vingança. Quando ele chegava eu ficava passando na sala sem camisa, às vezes até sem calças, só de cuecas. Ele ficava todo perturbado e desviava os olhos. Eu sentava perto, encostava a perna, piscava um olho pra ele na hora de apertar a mão. Um dia convidei-o pra fazer uma pescaria comigo. Levamos uma barraca, cobertores, pinga, duas dessas camas de armar. E de noite eu comi ele. Com gosto. Como se estivesse com o pau na bunda de todos os soldados da brigada do mundo. Ele nunca mais foi lá em casa, a minha mãe reclamava, parava ele na rua para perguntar por quê. Até que ele tomou formicida e morreu.
Aí nasceu o meu irmão. Não tem nada a ver uma coisa com a outra, mas não posso fazer nada se meu irmão nasceu mesmo quando ele morreu. Nasceu direitinho e tudo, mas quando tinha uns seis meses começou a definhar, definhar, e morreu de caganeira verde. Foi bom. Senão seria mais um filho da puta. Ou soldado da brigada, o que dá no mesmo. Mas no dia em que ele morreu, eu não pensei assim. Subi em cima da montanha e fiquei olhando o mundo. Agora eu penso que se ele não tivesse morri do eu não teria subido na montanha, e se não tivesse subido na montanha não teria visto o que vi. Mas as coisas são porque têm que ser, não adianta nada a gente querer que sejam de outro jeito. Então ele morreu, eu subi na montanha e vi. O mundo.

Trecho do conto "O Ovo" do Caio Fernando Abreu

07 agosto 2009

- Olha, quantos anos tu tem? Conversa comigo. Tu tá todo sujo de sangue. Te ofereceria um gole da minha bebida...O que houve, tu cheirou? Hum, imaginei. Olha, tu tá com a cara toda suja, tem sangue nas tuas mãos. (Menino passa a mão no nariz a fim de limpar o sangue que escorre pelas narinas.) Hum, tu já viu aquela cena do Pulp Fiction? (O menino não consegue falar, está com os olhos estalados de tanto pó que cheirou.)
- Oi, voltei.
- Ah, ótimo, trouxe a cerveja? Olha só esse cara aqui, acho que ele andou cheirando demais.
- Hum, tu cheirou cara? Olha, eu tenho desvio de septo, cada vez que eu cheiro eu faço um estrago, tu tem isso também? Algum outro problema?
(O Menino me olhava fixamente)
- Cara, eu sei que ela é linda, mas não te apaixona.
(Menino sorri.)
- Hum, olha só querido, acho melhor tu ir no banheiro e lavar o rosto e as mãos porque desse jeito tu não vai pegar ninguém nessa festa. O que tu acha?
(O menino sorri para mim, passa as mãos no nariz espalhando mais o sangue pelo rosto sujando-o ainda mais. Levanta-se e vai em direção ao banheiro)
- É acho que ele ficou afim de ti.
- Pode ser.

Diários de Samantha Wolf - uma de suas noites.

05 agosto 2009

Um pouco de Clarice e o livro dos prazeres

Ainda era cedo para acender as lâmpadas, o que pelo menos precipitaria uma noite. A noite que não vinha, não vinha, não vinha, que era impossível. E o seu amor que agora era impossível — que era seco como a febre de quem não transpira, era amor sem ópio nem morfina. E "eu te amo" era uma farpa que não se podia tirar com uma pinça. Farpa incrustada na parte mais grossa da sola do pé. Ah, e a falta de sede. Calor com sede seria suportável. Mas ah, a falta de sede. Não havia senão faltas e ausências. E nem ao menos a vontade. Só farpas sem ponta salientes por onde serem pinçadas e extirpadas. Só os dentes estavam úmidos. Dentro de uma boca voraz e ressequida os dentes úmidos mas duros — e sobretudo a boca voraz para nada. E o nada era quente naquele fim de tarde eternizada pelo planeta Marte. Seus olhos abertos e diamantes. Nos telhados os pardais secos. "Eu vos amo, pessoas", era frase impossível. A humanidade lhe era como morte eterna que no entanto não tivesse o alívio de enfim morrer. Nada, nada morria na tarde enxuta, nada apodrecia. E às seis horas da tarde fazia meio-dia. Fazia meio-dia com um barulho atento de máquina de bomba de água, bomba que trabalhava há tanto tempo sem água e que virará ferro enferrujado: há dois dias faltava água em diversas zonas da cidade. Nada jamais fora tão acordado como seu corpo sem transpiração e seus olhos-diamantes, e de vibração parada. Nem mesmo a angústia. O peito vazio, sem contração. Não havia grito. Dor? Nenhuma. Nenhum sinal de lágrima e nenhum suor. Sal nenhum. Só uma doçura pesada: como a da casca lenta dos elefantes de couro ressequido. A esqualidez límpida e quente. Pensar no seu homem? Não, era a farpa na parte coração dos pés. Ah, se as mãos começassem a se umedecer. Nem que houvesse água, por ódio não se banharia. Era por ódio que não havia água. Nada escorria. A dificuldade era uma coisa parada. E uma jóia diamante. A cigarra de garganta seca não parava de rosnar. Por seco e calmo ódio, quero isso mesmo, este silêncio feito de calor que a cigarra rude torna sensível. Sensível? Não se sente nada. Senão esta dura falta de ópio que amenize. Quero que isto que é intolerável continue porque quero a eternidade. Quero esta espera contínua como o canto avermelhado da cigarra, pois tudo isso é a morte parada, é a Eternidade de trilhões de anos das estrelas e da Terra, é o cio sem desejo, os cães sem ladrar. É nessa hora que o bem e o mal não existem. É o perdão súbito, nós que nos alimentávamos com gosto secreto da punição. Agora é a indiferença de um perdão. Pois não há mais julgamento. Não é um perdão que tenha vindo depois de um julgamento. É a ausência de juiz e condenado. E não chove, não chove. Não existe menstruação. Os ovários são duas pérolas secas. Vou vos dizer a verdade: por ódio seco, quero é isto mesmo, e que não chova.

Clarice Lispector - Trecho de "A Origem da Primavera ou A Morte Necessária em Pleno Dia".

04 agosto 2009

"Declamações entre latas de lixo e a suave soberana luz da mente"

Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite, que pobres, esfarrapados e de olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando sobre os tetos das cidades contemplando jazz, que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevados, que passaram por universidades com olhos frios e radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de William Blake entre os estudiosos da guerra, que foram expulsos das universidades por serem loucos e publicarem odes obscenas nas janelas do crânio, que se refugiaram em quartos de paredes de pintura descascada em roupa de baixo queimando seu dinheiro em cestas de papel, escutando o Terror através da parede.
Flagelaram seus torsos noite após noite com sonhos, com drogas, com pesadelos na vigília, álcool e caralhos e intermináveis orgias, incomparáveis ruas cegas sem saída de nuvem tremula e clarão na mente, iluminando completamente o mundo imóvel do Tempo intermediário, porre de vinho nos telhados, cabeça feita do prazer, vibrações de sol e lua e árvore no ronco de crepúsculo de inverno, declamações entre latas de lixo e a suave soberana luz da mente, trêmulos, a boca arrebentada e o despovoado deserto do cérebro esvaziado de qualquer brilho. Batalhão perdido de debatedores platônicos saltando dos gradis das escadas de emergência dos parapeitos das janelas do Empire State da Lua, tagarelando, berrando, vomitando, sussurrando fatos e lembranças e anedotas e viagens visuais e choques nos hospitais e prisões e guerras, intelectos inteiros regurgitados em recordação total com os olhos brilhando por sete dias e noites. Vaguearam famintos e sós procurando jazz ou sexo ou rango, distribuíndo folhetos ininteligíveis, que apagaram cigarros acesos nos seus braços protestando contra o nevoeiro narcótico de tabaco do Capitalismo, que distribuíram panfletos supercomunistas em Union Square, chorando e despindo-se enquanto as sirenes de Los Alamos os afugentavam gemendo mais alto que eles. Morderam policiais no pescoço e berraram de prazer nos carros de presos por não terem cometido outro crime a não ser sua transação pederástica e tóxica, que uivaram de joelhos no Metrô e foram arrancados do telhado sacudindo genitais e manuscritos, que se deixaram foder no rabo por motociclistas santificados e urraram de prazer, que enrabaram e foram enrabados por esses serafins humanos, os marinheiros, carícias de amor atlântico e caribeano, que transaram pela manhã e ao cair da tarde em roseirais, na grama de jardins públicos e cemitérios, espalhando livremente seu sêmem para quem quisesse vir, que soluçaram interminavelmente tentando gargalhar mas acabaram choramingando atrás de um tabique de banho turco onde o anjo loiro e nu veio atravessá-los com sua espada, que perderam seus garotos amados para as três megeras do destino, a megera caolha do dólar heterossexual, a megera caolha que pisca de dentro do ventre e a megera caolha que só sabe ficar plantada sobre sua bunda retalhando os dourados fios intelectuais do tear do artesão, que copularam em êxtase insaciável com uma garrafa de cerveja, uma namorada, um maço de cigarros, uma vela, e caíram da cama e continuaram pelo assoalho e pelo corredor e terminaram desmaiando contra a parede com uma visão da buceta final e acabaram sufocando um derradeiro lampejo de consciência, que adoçaram as trepadas de um milhão de garotas trêmulas ao anoitecer, acordaram de olhos vermelhos no dia seguinte mesmo assim prontos para adoçar trepadas na aurora. Que jogaram seus relógios do telhado fazendo seu lance de aposta pela Eternidade fora do Tempo e despertadores caíram nas suas cabeças por todos os dias da década seguinte, que cortaram seus pulsos sem resultado por três vezes seguidas, desistiram e foram obrigados a abrir lojas de antigüidades onde acharam que estavam ficando velhos e choraram. Cantaram desesperados nas janelas, jogaram-se pela janela do metrô, choraram pela rua afora, dançaram sobre garrafas quebradas de vinho descalços arrebentando nostálgicos discos de jazz europeu dos anos 30 na Alemanha, terminaram o whisky e vomitaram gemendo no toalete sangrento, lamentações nos ouvidos e o sopro de colossais apitos a vapor, que mandaram brasa pelas rodovias do passado viajando pela solidão da vigília de cadeia, que guiaram atravessando o país durante setenta e duas horas para saber se eu tinha tido uma visão ou se você tinha tido uma visão ou se ele tinha tido uma visão para descobrir a Eternidade e finalmente partiram para descobrir o Tempo.

Alguns trechos selecionados de "Howl" de Allen Ginsberg

02 agosto 2009

A: Você é meu companheiro.
B: Hein?
A: Você é meu companheiro, eu disse
B: O quê?
A: Eu disse que você é meu companheiro.
B: O que é que você quer dizer com isso?
A: Eu quero dizer que você é meu companheiro. Só isso.
B: Tem alguma coisa atrás, eu sinto.
A: Não. Não tem nada. Deixa de ser paranóico.
B: Não é disso que estou falando.
A: Você está falando do quê, então?
B: Estou falando disso que você falou agora.
A: Ah, sei. Que eu sou teu companheiro.
B: Não, não foi assim: que eu sou teu companheiro.
A: Você também sente?
B: O quê?
A: Que você é meu companheiro?
B: Não me confunda. Tem alguma coisa atrás, eu sei.
A: Atrás do companheiro?
B: É.
A: Não.
B: Você não sente?
A: Que você é meu companheiro? Sinto, sim. Claro que eu sinto. E você, não?
B: Não. Não é isso. Não é assim.
A: Você não quer que seja isso assim?
B: Não é que eu não queira: é que não é.
A: Não me confunda, por favor, não me confunda. No começo era claro.
B: Agora não?
A: Agora sim. Você quer?
B: O quê?
A: Ser meu companheiro.
B: Ser teu companheiro?
A: É.
B: Companheiro?
A: Sim.
B: Eu não sei. Por favor não me confunda. No começo era claro. Tem alguma coisa atrás, você não vê?
A: Eu vejo. Eu quero.
B: O quê?
A: Que você seja meu companheiro.
B: Hein?
A: Eu quero que você seja meu companheiro, eu disse.
B: O quê?
A: Eu disse que eu quero que você seja meu companheiro.
B: Você disse?
A: Eu disse?
B: Não, não foi assim: eu disse.
A: O quê?
B: Você é meu companheiro.
A: Hein?


Diálogo retirado do livro Morangos Mofados do Caio Fernando Abreu.